spoiler visualizarIsa Beneti 09/11/2020
Machado Romântico
Incrível como, mesmo seguindo quase à risca os padrões estabelecidos pela escola do Romantismo, Machado consegue criar uma história original e manter muitas das características que tornam sua escrita única e à frente de seu tempo. Afinal, essa obra contem SIM muitos dos clichês românticos, tal como a mulher idealizada/pura/casta (Helena), os diálogos melodramáticos e o enredo superficialmente instigante (bem típico de folhetins). Mesmo assim, a escrita do autor continua sendo muito profunda e bem desenvolvida, tal qual se vê em seus romances realistas, e suas personagens também possuem uma profundidade psicológica maior do que é comum em textos dessa época, o que torna esse livro superior aos outros da mesma estética.
A história se inicia a partir da morte do rico Conselheiro do Vale, que no seu testamento deixa parte de sua herança para o filho Estácio e revela a existência de uma outra filha bastarda: Helena, que tinha os estudos bancados pelo pai e que devia ser integrada à família tal como um membro legítimo. D. Úrsula, irmã do falecido, reluta em obedecer às ordens do irmão, mas acaba cedendo e aceitando a agregada, que havia sido recebida de bom grado por Estácio. Rapidamente, a excelente garota de 16 anos (que mais parecia ter 25) conquista o coração de todos por sua bondade e por seus dotes, inclusive de sua tia, que num determinado momento adoece e é cuidada pela garota, e também de outros indivíduos próximos da família, como padre Melchior (conselheiro) e Mendonça (amigo de Estácio e apaixonado por Helena, chegando a pedir sua mão). A única personagem que não se afeiçoa da menina é Dr. Camargo, médico que cuida da família e interessado que Estácio se case com sua filha Eugênia (uma mulher meio vaidosa e mimada), por isso vê Helena como intrusa, chegando a chantageá-la em certos momentos da narrativa.
Esses momentos são certamente os mais interessantes do livro, e é aí que Machado revela sua grande habilidade de criar mistérios na história, de manter os leitores instigados e de desenvolver personagens realísticas em seus interesses e corrupções. Isso porque a chantagem de Dr. Camargo está relacionada a um segredo de Helena que permeia toda a narrativa e que nos é revelado apenas no desfecho. O narrador faz referências constantes a esse segredo, que envolve a ida frequente de Helena a uma casa com bandeira azul, mas não o revela por inteiro, deixando o leitor preso e interessado na história.
Estácio, estimulado por Helena (que havia sido chantageada por Dr. Camargo), fica noivo de Eugênia, mas padre Melchior expõe a ele seu amor mais que fraternal por sua irmã (SIM, Machado trata aí de um tema muito polêmico: o incesto!), visto que ele se opunha veementemente ao seu casamento com Mendonça, oposição que Estácio justificava pela convicção de que Helena amava mais a outro homem desconhecido (que logo descobriríamos ser o próprio Estácio). No meio desse "casa ou não casa", Estácio acaba descobrindo as visitas da irmã à casa da bandeira azul, e descobre que nela mora um homem pobre chamado Salvador. Por fim, depois de muita enrolação, a verdade acaba vindo a tona e Salvador assume ser pai de Helena: o Conselheiro apenas tinha adotado a menina porque ela era filha de sua amante (Ângela), que traiu Salvador durante uma de suas viagens e fingiu ser viúva a fim de que Helena tivesse um futuro melhor, bancado pelo Conselheiro. O seu verdadeiro pai, mesmo sofrendo, aceita ser tido como morto para que sua filha tenha uma vida melhor, e é com esse mesmo intuito que pede que a menina (que mais tarde fica sabendo que seu verdadeiro pai ainda estava vivo) não revele sua verdadeira origem quando foi estabelecida como herdeira e filha do Conselheiro.
Uma vez descoberta a mentira na identidade de Helena, D. Úrsula e Estácio decidem não deserdá-la nem tirá-la da família, o que, apesar de assegurar a ela um futuro rico e próspero, impede que ela volte a ter contato com o verdadeiro pai e que se case com seu verdadeiro amor (Estácio). Por isso, a garota acaba entristecendo, adoecendo e, por fim, morrendo.
O final é bem triste, porém realístico, sobretudo sua cena final, em que Dr. Camargo se mostra contente com a morte de Helena, que assegura a riqueza de sua filha. É por meio desses sutis detalhes que percebemos a profundidade desse texto, que, apesar de ter as superficialidades típicas de um romance melodramático de folhetim, também explora a relações de interesse entre as personagens: até mesmo de Helena, que guardou sua verdadeira identidade a fim de permanecer herdeira (mesmo que por obrigação de seu pai). O único ponto do desfecho(que pra mim pareceu) negativo é seu tom moralizante que de certa forma justifica o amor entre Estácio e Helena, acabando com a polêmica do incesto.