Tiago 06/08/2024
Guimarães Rosa e sua escrita singular
Uma obra que não é fácil de descrever. Guimarães Rosa é um escritor que não se encaixa muito bem nas caixinhas que a maioria dos críticos literários gostam de criar. A escrita de Guimarães Rosa é repleta de neologismos e tem um grau de oralidade imenso. Até considero que este livro é dos poucos de ficção em que a versão audiobook não sofreria muitas perdas em relação ao texto escrito. Aliás, muitas vezes, principalemnte quando uma frase que ao ser lida parece dificil de compreender, ler o texto em voz alta ajudou na compreensão. Um dicionário e um caderno para apontar os neologismos do Guimarães Rosa são dois instrumentos essenciais para a leitura de "Primeiras Estórias".
Nesta coletânea de contos, o escritor mineiro usa o sertão, que consiste aproximadamente na região norte de Minas Gerais, sudoeste da Bahia e leste de Goiás, como cenário das suas histórias. Há de tudo um pouco mas destaco as crianças, os valentões e os loucos. Tudo isso num ambiente quase sempre muito pobre e miserável. A profundidade dos textos é enorme e eu acredito que nesta leitura eu tenha apenas arranhado a superfície na maioria deles. Há muita filosofia, muita reflexão. Há até incursões ao sobrenatural. Os meus contos favoritos foram: "Famigerado", "Sorôco, sua mãe, sua filha", "Os Irmãos Dagobé , "A Terceira Margem do Rio", "O Cavalo que bebida cerveja", "Luas de Mel" e "A Benfazeja".
Este ano fez 30 anos que li este livro pela primeira vez para a escola e naquela época havia sido uma leitura praticamente impossível. O texto de Guimarães Rosa é demasiado inacessível para uma leitura escolar. Se ainda fosse algo supervisionada, poderia ter tido algum valor na época. Foi sim orientada para as provas e nada mais. A edição que li, da Global Editora, tem um longo texto de fortuna crítica no final.
Para finalizar, além de recomendar a leitura (que deve ser feita lentamente), destaco algumas frases do livro que têm a cara de Guimarães Rosa:
1. Era uma viagem inventada no feliz. (As Margens da Alegria)
2. Seu pensamentozinho estava ainda na fase hieroglífica. (As Margens da Alegria)
3. Aquele homem, para proceder da forma, só podia ser um brabo sertanejo, jagunço até na escuma do bofe. (Famigerado)
4. Ali, antenasal, de mim a palmo! (Famigerad)
5. A gente estava levando agora o Sorôco para a casa dele, de verdade. A gente, com ele, ia até aonde que ia aquela cantiga. (Sorôco, sua mãe, sua filha)
6. A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. (A terceira margem do rio)
7. Eu sofria já o começo de velhice — esta vida era só o demoramento.
8. Eles se olhavam para não-distância, estiadamente, sem sabêres, sem caso. Mas a Moça estava devagar. Mas o Moço estava ansioso. (A terceira margem do rio)
9. Meu Amigo, não. Disse um “Oh” polissilábico, sem despesas de emoção. (Fatalidade)
10. Iam-se, na ceguez da noite — à casa da mãe do breu: a vaca, o homem, a vaca — transeuntes, galopando. (Sequência)
11. Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo. (O Espelho)
12. Tão branco; mas não branquicelo, senão que de um branco leve, semidourado de luz: figurando ter por dentro da pele uma segunda claridade. (Um moço muito branco)
13. Sou remediado lavrador, isto é — de pobre não me sujo, de rico não me esporcalho. (Luas de mel)
14. Me passei para o lado do velho, junto — … tapatrão, tapatrão… tarantão… tarantão… — e ele me disse: nada. Seus olhos, o outro grosso azul, certeiros, esses muito se mexiam. (-Tarantão, meu patrão)
15. Enquanto a gente brincava, descuidoso, as coisas ruins já estavam armando a assanhação de acontecer: elas esperavam a gente atrás das portas. (Os cimos)