Leo.Klaus 04/10/2024
Livro apoteótico, tal qual o inexpugnável cachalote branco!
"Sou da opinião de que meu corpo não é mais que a borra do meu melhor ser. Na verdade, que leve meu corpo quem o queira, ele não sou eu".
Moby Dick é um livro que, de início, pode intimidar quem se atreve a tentar lê-lo: seja pela escrita de Herman Melville (que, embora magistral e riquíssima em detalhes e descrições, não se pode negar ser prolixa); seja pela enxurrada de referências à Bíblia, a autores clássicos e a figuras políticas, tanto históricas quanto contemporâneas ao autor; seja pela tecnicidade presente em alguns capítulos da obra. Tais circunstâncias podem fazer muitos leitores, independentemente de sua bagagem literária, sentirem que nunca estão preparados para esta leitura porque "precisam ler outro livro antes", de modo a captar mais um punhado de referências apresentadas pelo autor. A conclusão a que cheguei, porém, é a de que é desnecessário ? e até mesmo desrespeitoso, em certa medida ? tentar captar todas as mensagens subliminares e referências presentes na obra, pois Moby Dick não é um livro para ser perscrutado em sua inteireza. É um livro que transcende o tempo em que foi escrito por tratar de temas universais e que, assim como outros clássicos, merece releituras, porque a cada vez trará novas perspectivas e novos pontos de observação.
A premissa aqui é bastante simples. Trata-se, basicamente, da história de Ahab, capitão de um navio baleeiro ? narrada por Ismael (na verdade, por alguém que se intitula como Ismael, na célebre frase de abertura "Chamem-me Ismael", embora não se saiba se este é realmente seu verdadeiro nome) ?, que perdeu sua perna durante a caça ao cachalote branco Moby Dick e, tomado pelo desejo de vingança, jurou matar o animal, sem se importar com as consequências dessa busca, desde o início fadada ao fracasso.
Acontece que a obra vai muito além disso, na medida em que esmiúça não só a psique de Ahab (observada por outra pessoa) e a maneira como esse desejo de vingança tomou conta dele, levando-o à loucura, como também retrata a forma com que o ódio pode ser incutido no coletivo por meio de um único indivíduo, uma vez que todos na tripulação, no início da jornada, partilharam dos sentimentos de Ahab e juraram vingança a um animal que nunca sequer haviam visto, acreditando cegamente na história de que o animal premeditava todos os seus ataques por ser a encarnação do mal, motivo pelo qual devia ser combatido.
Além disso, há uma carga filosófica fortíssima na obra, induzida pelo tempo que os personagens passam em alto-mar em busca de Moby Dick. A caça baleeira é uma atividade que por vezes levava anos; por isso, a tripulação, varrida completamente do convívio social, cedia a questionamentos que iam desde a razão pela qual estavam fazendo aquilo até questões mais profundas, como o que compõe a essência do ser humano, o que seria de um homem que vendeu sua alma para alcançar determinado objetivo (a esse respeito, gostei muito da abordagem sutil de Melville sobre o pacto fáustico) e qual o papel da religião na vida das pessoas. O livro não se propõe a apresentar respostas definitivas a nenhum desses questionamentos, mas sim a expor pontos de vista distintos e mostrar como uma mesma pessoa pode mudar seus pensamentos e até mesmo seus valores diante das circunstâncias em que vive.
Outro aspecto que me agradou muito foi que praticamente todo o livro pode ser enxergado como uma simbologia para algo maior do que a simples caça baleeira. A começar pela escolha dos nomes: praticamente todos os personagens (e também os navios baleeiros) têm nomes bíblicos e, mais do que isso, o desdobramento da história de cada personagem está, de alguma forma, associada ao nome que ele carrega. Aliás, o navio comandado pelo capitão Ahab leva o nome Pequod, cuja origem histórica remete a uma tribo indígena de mesmo nome que habitava a região do atual estado de Connecticut, nos Estados Unidos, e foi praticamente dizimada pelos colonizadores europeus e pela disseminação de doenças durante o século XVII, o que foi uma alegoria de Melville para a destruição iminente à qual rumava a tripulação. Até mesmo a caça a Moby Dick pode ser interpretada metaforicamente: há quem diga que ela representa a dificuldade de se lutar contra a sociedade escravagista na qual vigorava a visão de uma supremacia da população branca, já que em vários momentos se ressaltou a brancura do cachalote e, não obstante os esforços empreendidos, ela não foi derrotada; há quem diga que Moby Dick representa Deus, cuja força e presença são incomparáveis a qualquer esforço humano destinado a tentar destruí-Lo. A beleza desta obra está justamente na multiplicidade de interpretações possíveis, as quais podem perfeitamente coexistir harmonicamente, sem que uma necessariamente anule a outra. Essa é a beleza da literatura e da arte enquanto representação da vida e, neste aspecto, Moby Dick dá aula.