Todos conhecem – mesmo os que ainda não leram o romance de Melville – a história de Moby Dick: o herói, o moço Ismael, vai a New Bedford e engaja-se como marujo num navio baleeiro, o Pequod. Seu companheiro na aventura é um estranho homem de cor, Queequeg, príncipe de uma tribo canibal da Polinésia – um primitivo em todo o esplendor bárbaro da sua condição de selvagem. O comandante do Pequod é o Capitão Acab, homem que sofre uma estranha e perigosa loucura, a paixão de ódio por Moby Dick, a baleia branca astuta e feroz, que todos os marinheiros conhecem e temem, e que já arrancou uma perna do Capitão Acab num duelo anterior. Atrás de Moby Dick sai o Pequod, com um dobrão de ouro pregado no mastro grande para servir de prêmio ao primeiro marinheiro que descobrir o penacho de vapor da fera marinha, – e, acompanhando a cantiga do vento nas velas, o toque-toque da perna de marfim do capitão soa pelo convés, dia e noite.
Depois de uma procura dramática afinal os inimigos se encontram, travam a grande luta que dura três dias, no fim da qual sai triunfante a baleia branca, terível e incólume, na sua satânica invencibilidade. Morrem todos, menos Ismael que conta a história, e é socorrido por outro baleeiro, o Rachel.
Dizem os estudiosos da obra de Melville que ao escrever essa aventura no mar a intenção do autor foi por em símbolos o eterno conflito entre o homem e o seu destino, – a baleia representando o mal infinito do universo e Acab a vontade do homem que se opõe a essas forças. Será talvez assim. Mas acontece entretanto que Moby Dick tem a par disso uma grandeza própria, que não carece de símbolos para se impor – antes transcende de qualquer alegoria e atinge uma espécie de realidade “pessoal”: – na sua impiedosa ferocidade ela é uma coisa em si. A criança que lê o drama da fera do mar e não entende de símbolos e não procura interpretações profundas, sente essa grandeza com toda força, apenas na sua representação a bem dizer material e imediata. E é como tal, aliás, como a via em menina, que Moby Dick tem permanecido na minha imaginação – a pura fera, na sua total capacidade de fera, que a outra fera enfrenta, num duelo heróico entre os dois brutos primitivos, convencidos de que nem a vastidão dos sete mares será capaz de os caber a ambos.
Foi o espetáculo dessa luta espantosa que Herman Melville soube descrever como ninguém, fazendo com que a testemunhemos tão de perto, tão intimamente que a cada instante de leitura trememos de medo, participamos da cólera e do entusiasmo feroz da luta. O vulto horrendo de Moby Dick nos fica povoando para sempre os pesadelos, e jamais enfrentamos o mar sem sentir, no fundo do coração, o desejo e o susto de vê-la emergir, de repente, das águas, lançando nos mares o seu penacho de vapor azul prateado, como um desafio insolente.
Rachel de Queiroz
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