Miguel Freire 27/06/2024
A epopeia leviatância de Melville
“Chamem-me Ismael”
Ismael, filho de Abraão com sua escrava Agar, o primogênito rejeitado, o bastardo errante, o impetuoso e violento filho da natureza; não é à toa que o narrador de Moby Dick tenha tomado para si o nome deste personagem das Sagradas Escrituras: filho bastardo da terra, que não lhe acalma a inquietação do espírito, decide errar ao mar, seu verdadeiro pai, o único amplo o suficiente para dar vazão aos arroubos de sua alma, que ocupam um bom pedaço deste livro.
Moby Dick é um livro complexo, e é um livro grandioso; tão complexo e tão grandioso quanto um organismo vivo, quanto uma… baleia: filosofia, religião, sociologia, economia e biologia são alguns dos tópicos abordados ao longo dos 135 capítulos, com uma linguagem que passa por textos bíblicos, teatro shakespeariano e narrativa clássica de aventura, formando uma rede intrincada de nervos, que compõem os tecidos, que compõem um sistema, que compõem um ser; a forma da obra toma a forma do grande leviatã, o centro de tudo aqui.
Grande parte dessa complexidade se dá pela visão atenta e profunda do narrador acerca de todas as coisas. Nada fica somente na superfície: de cada atividade, de cada objeto ou animal, de cada personagem ele consegue extrair as mais profundas reflexões e analogias com a natureza humana, usando de períodos enormes, cheios de anáforas e orações coordenadas, com um vocabulário rico e um estilo inflamado, o que, obviamente, torna a leitura mais difícil, mas, mesmo quando nos sentimos meio perdidos nos pensamentos de Ismael, o próprio conjunto estilístico do texto e a maneira como ele soa já nos maravilha com a sensação de magnitude, de assombro diante de um desconhecido tão profundo quanto o mar e tão elevado quanto os céus. São camadas e mais camadas possíveis de interpretação, um verdadeiro tesouro inesgotável, que não pode ser abarcado com apenas uma leitura.
O livro toma a forma grandiosa da baleia, isso eu já disse; mas assim como a Moby Dick que dá nome à obra, ele não é uma baleia comum: é uma baleia racional, com alma e faculdades superiores, representadas pela linguagem reflexiva e profunda, das quais já falei também. Acontece que essa aura poética que rodeia a história vai na contramão da literatura marítima em voga na época de Melville. As histórias de marinheiros que mais agradavam o público eram sóbrias e realistas, buscando retratar a vida no convés como algo brutal e prático, sem espaços para divagações ou filosofias. O próprio Melville, por problemas financeiros, escreveu duas obras nesse estilo que ele chamava (pejorativamente) de “fatos nus e crus”: Redburn e Jaqueta Branca. Mas, assim como seu personagem Ismael, o autor possuía uma alma grande demais para se prender a uma escrita tão limitante, que o impedia de usar do total potencial de sua prosa. Nessa luta entre realidade e fantasia, a fantasia (felizmente) acabou predominando em Moby Dick, porém, ao custo de ter um recebimento discreto entre a crítica e o público da época, levando Melville a desistir de se sustentar apenas pela escrita.
Só postumamente é que sua “epopeia leviatânica” recebeu o devido reconhecimento, sendo considerada até hoje uma das maiores obras literárias de todos os tempos. Só temos que agradecer ao seu autor por ter resistido à sua época e ter acreditado na poesia e na profundidade de todos os seres, recusando-se a limitar a viagem baleeira a um simples “diário de bordo” ou uma peça alegórica, mas fazendo do convés do Pequod não apenas uma parte do navio, mas um retrato profundo de toda a humanidade.