Rangel25 07/01/2024
Livro infantil para adulto
É preciso primeiro pontuar duas coisas sobre o livro que não vi na maioria das resenhas sobre o livro.
1- Foi escrito em um tempo e lugar em que o debate racial era inexistente. O racismo transparece em várias partes da história, revelando bem o estereotipo escravagista estadunidense.
2- Há outra perspectiva de infância e sobre o que é literatura para criança, uma vez que se trata de uma obra do final do século XIX.
Por esses depois pontos eu não o enxergo como um livro para crianças do nosso tempo. Pelo menos não para uma leitura isolada. Se fosse trabalhado em uma leitura conjunta, mediado por uma problematização consciente de pontos da história, talvez pudesse ser apresentado a pré-adolescentes. Contudo, me parece fazer mais sentido o perceber como uma obra para adultos que queiram permitir o contato com sua infância.
Sim, pois é um livro - a parte dos pontos que levantei - bastante divertido e inteligente. Tom é aquele típico menino levado, custoso como dizemos em Minas, extremamente esperto e malandro. Suas travessuras são divertidas e é impossível não reconhecer nele muito de toda criança que um dia fomos. Mas ele tem mais que isso, Tom tem complexidade, seus sentimentos são ambíguos como o de todos nós na vida real, mas nem sempre na literatura. Ele é um órfão cuidado por uma tia que o ama muito, porém sente dificuldades em dosar seu amor com a educação (esse ponto também precisa ser entendido no modelo americano do século XIX).
A orfandade de Tom é aquela que toda criança em maior ou menor grau tem, ainda que possua os pais vivos. Qual criança nunca acreditou que os responsáveis não a amariam mais se descobrissem alguma traquinagem cometida? Qual criança nunca desejou que os pais desaparecessem por um instante para poder se sentir muito mais livre? Que menina ou menino nunca fantasiou um amor? Quem nunca quis ser o vilão das fantasias, o pirata ou ladrão?
Por esse lado, vemos que há muito desse menino em todos nós. Mesmo que já sejamos adultos. E toda essa complexidade é desenvolvida muitíssimo bem pelo autor. A gente consegue rir em algumas situações, se envergonhar em outras e ficar apreensivo em outras. Conseguimos entender Tom em algumas escolhas e nos irritar com outras. Vemos o jovenzinho sofrer algumas injustiças e termos de imediato pena dele, Em outras situações o vemos cometer injustiçadas, mentir e enganar que muito o ama.
Quanto à história, o enredo é bem simples, Tom mora com a tia, com o irmão e uma prima. Mas é com os amigos que apronta suas espertezas, descobre o mundo e aproveita a infância. Infância, aliás, com brincadeiras e aventuras típicas de qualquer pessoa que cresceu no interior. É em uma dessas aventuras que o menino, junto com o amigo Huckleberry Finn, presencia um crime que torna o medo ainda mais presente na sua vida. Afinal, ele precisará decidir entre revelar a identidade do terrível assassino e correr o risco de sofrer alguma vingança ou conviver com o sentimento de culpa.
Dentro desse monte de brincadeiras e perigo, o menino ainda consegue encontrar um tempinho para o amor e o ciúme. Tudo inocente, mas com a potência típica dessa fase de descobrimentos.
As aventuras de Tom Sawyer é, por tudo isso, uma homenagem à infância com toda a sua inocência e contradição. Tom é um bom menino, tão bom que consegue ter raiva, ciúmes, agredir, enganar etc. Por isso, ele encanta demais. Ao contrário do que se espera, o menino também não passa por uma transformação moralizante como costuma acontecer em algumas histórias infantis. Tom não encerra sua história como um menino angelical e obediente. Sua jornada não serve de viés didático para mostrar como meninos levados se metem em encrenca, para ao final se tornar uma boa criança.
Para mim, a história de Tom merece ser lida. Seria facilmente cinco estrelas. No entanto, ainda que se considere o contexto histórico de produção do livro, há questões que incomodam, como o já mencionado racismo e a representação infeliz do indígena americano.
Por tudo isso, não consegui avaliar com uma nota melhor.