RicardoDM 19/04/2016
Os enamoramentos
Numa entrevista de 2005 a Elide Pittarello, Javier Marías afirma:
"Para mim, é natural que fale uma voz masculina, pois vejo o mundo do meu ponto de vista. Creio que só em 'Menos escrúpulos', um conto, coloquei um narrador que era uma mulher. É um conto breve, não me sentia capaz de fazê-lo ao longo de muitas páginas."
No mesmo ano, ao ser entrevistado por Michel Braudeau, Marías diz:
"Durante séculos, a França exerceu grande influência sobre a vida espanhola e sobre seus intelectuais. Era o país que mais chamava a atenção, por sua literatura, seus pensadores e suas modas. Em trinta ou quarenta anos, isso desapareceu por completo. A França se transformou simplesmente em 'outro' país, em mais um país. Só desperta um interesse ocasional, quando realmente vale a pena."
Com um pouco de imaginação, é possível ver nesses comentários os germes do que viria a ser o romance "Los enamoramientos" (2011). O primeiro elemento que chama a atenção é o uso de um ponto de vista feminino -- não por umas poucas páginas, mas por mais de trezentas. María Dolz, a narradora, todos os dias de manhã, antes de ir ao trabalho, contempla num café o que a seus olhos parece ser o casal perfeito: sem jamais trocar uma palavra com eles, María sonha com a existência mágica daquele homem e daquela mulher -- sonho que, da mesma forma que a comida servida no café, faz parte da alimentação necessária a sua jornada.
Tudo muda, porém, quando o casal desaparece por algumas semanas. Preocupada, pergunta a um funcionário do local e descobre que o homem, Miguel Desvern (ou Deverne, ela não sabe muito bem), havia sido assassinado, por engano, por um mendigo. O transtorno causado pela notícia faz María criar coragem para, no primeiro reencontro com a mulher, Luisa, aproximar-se e apresentar-se. Por meio de Luisa, María acaba conhecendo Díaz-Varela, com quem se envolve mais tarde -- envolvimento que faz a cultura francesa, a mesma que desaparecera do horizonte intelectual espanhol, desempenhar um papel preponderante no relato.
Se até então Javier Marías havia usado de maneira ostensiva a cultura de língua inglesa como referência, especialmente Shakespeare, aqui é Balzac e Dumas que são convocados. O diálogo com Balzac se apoia na novela "O coronel Chabert", sobre um oficial dado como morto durante as guerras napoleônicas, mas que reaparece anos depois, vivo, provocando contrariedade em sua viúva (agora casada de novo, desfrutando de uma excelente posição social). Díaz-Varela conta a María a história do coronel e diz querer evitar que a memória de Miguel, como um novo Chabert, assombre Luisa -- isso porque, segundo María, Díaz-Varela teria um interesse amoroso em Luisa. Certo dia, no entanto, María escuta inadvertidamente uma conversa de Díaz-Varela e a assombrada passa a ser ela -- o que impulsiona toda a segunda metade da narrativa.
São dignas de nota algumas semelhanças entre "Los enamoramientos" e "Mañana en la batalla piensa en mí", romance de JM publicado em 1994. Além do fato de um mesmo personagem, Ruibérriz de Torres, ligar as duas obras -- em ambas, envolvido em atividades ilícitas, trilha iniciada no ótimo conto "Mala índole" --, seus narradores, María Dolz e Victor Francés, são atormentados por algo que acontece a eles, e esse tormento é condensado por meio de uma peça de ficção: em "Mañana en la batalla...", faz-se uso da cena da maldição dos fantasmas em "Ricardo III" de Shakespeare: "Amanhã na batalha pensa em mim. Desespera e morre"; em "Los enamoramientos", recorre-se a "Os três mosqueteiros" de Dumas, na cena em que os protagonistas julgam e condenam Milady, repetindo cada um a sentença: "A pena de morte, a pena de morte, a pena de morte".