Stella F.. 26/10/2022
Conhecendo um pouquinho mais do nosso Brasil
Macunaíma, o herói sem nenhum caráter - Mário de Andrade - Editora Itatiaia - 1983
Mário de Andrade fez parte do movimento da semana de 1922 e tentou criar através de sua escrita uma identidade nacional, um Brasil como uma unidade.
Macunaíma foi lançado em 1928, foi escrito em 6 dias depois de uma pesquisa desde o início da década de 20 baseada principalmente no livro Do Roraima ao Orinoco, do alemão Kock-Grunberg, que possui diversos mitos de tribos indígenas da Região Norte do Brasil. Foi muito criticado por pessoas dizendo que ele havia copiado o conteúdo do livro alemão, e ele mesmo dizia que havia se baseado sim no livro, mas dado características próprias ao herói, uma mistura das raças indígena, branca e preta, usando dos seus recursos de narrativa muito criativa, diferenciada, irônica e muitas vezes críticas sociais, a políticos, ao jeitinho brasileiro.
A orelha da minha edição, escrita por João Etienne Filho, vai nos falar: “E o herói sem nenhum caráter passou a viver vida própria, enquanto o livro, escrito por puro prazer, “por brincadeira”, numas férias de Araraquara, de um jato, se tornou uma das mais importantes obras escritas em toda a nossa história literária. Mas as curiosidades em torno dele não desapareceram, antes aumentaram. Disseram que tudo era inspirado no livro do sábio naturalista germânico, Kock-Grunberg, Vom Roraima zum Orinoco. E era, embora não todo, pulou logo na arena Mário de Andrade proclamando-o, em carta a Raimundo Moraes: Copiei, sim, meu querido defensor. O que me espanta, e acho sublime de bondade, é dos maldizentes se esquecerem de tudo quanto sabem, restringindo a minha cópia a Kock-Grunberg, quando copiei todos. E até o sr., na cena da Boiúna. Confesso que copiei, copiei às vezes textualmente. Quer saber mesmo? Não só copiei os etnógrafos e os textos ameríndios, mas ainda, na Carta pras Icamiabas, pus frases inteiras de Rui Barbosa, de Mário Barreto, dos cronistas portugueses coloniais.”
Macunaíma, da tribo Tapanhumas, nasce às margens do Uraricoera, feio e preto, mas ao longo da história torna-se branco e louro. Mas muitas outras transformações ocorrem até virar uma estrela ao final e todos que ele conhece, de alguma maneira ou de outra, viram estrelas, lendas, e um ponto importante, é que muitos animais e plantas antes eram humanos. Macunaíma tem dois irmãos: Manaape, que ele chama de feiticeiro e Jiguê, que ele chama de bobo. Ao nascer, ele fica muito tempo sem falar, depois vai dizer que não falava porque ninguém perguntava nada. Era preguiçoso, e sempre pensava em passar a perna nos outros, deixar que os outros trabalhassem. E gostava de mentir, e dizia que não queria, mas quando via, já estava mentindo. E estava sempre sendo malvado com seus irmãos. Ao longo da narrativa vamos conhecer vários motes dele, tais como Ai, que preguiça! Porém, jacaré acreditou? Nem o herói. Pouca Saúde e muita Saúva, são os males do Brasil. E não podemos deixar de ressaltar, que ele gostava muito de brincar, roubava sempre às mulheres dos irmãos.
O fio condutor da narrativa será a paixão dele por Ci, a Mãe do Mato, que dará a ele, como lembrança, um amuleto chamado muiraquitã. O herói vai perdê-lo e sai em busca do amuleto. Descobre que foi pego por um gigante, Piaimã ou Venceslau Pietro Pietra, um capitalista, e chega à São Paulo para tentar reavê-lo. Mas Macunaíma vai viajar pelo país todo. Não existirá para ele uma barreira geográfica, ele sairá de São Paulo, e em uma corrida, fugindo do gigante, chegará logo em um extremo ou outro do Brasil. Depois de muitas viagens e muitas travessuras, Macunaíma volto à sua terra, e lá acaba morrendo, não sem antes contar toda a sua história a um papagaio, que fica como herdeiro de toda a trajetória do herói sem nenhum caráter, que “é a metáfora de um povo em formação, sem “nenhum caráter.” (pg. 138)
“Terminada a função a companheira de Macunaíma toda enfeitada ainda, tirou do colar uma muiraquitã famosa, deu-a pro companheiro e subiu pro céu por um cipó. É lá que Ci vive agora nos trinques passeando, liberta das formigas, toda enfeitada ainda, toda enfeitada de luz, virada numa estrela. É a Beta de Centauro.” (pg. 22)
E vamos conhecendo o Brasil através das lendas e do folclore, algumas já conhecidas e outras nem tanto. E Mário de Andrade vai usar uma linguagem singular, criando palavras, usando parágrafos para discriminar muitos animais do mesmo tipo, sem vírgulas, além da delícia dos ditados, muito populares, que reconhecemos ao longo da leitura. É um livro engraçado, de aprendizado, mas também de crítica. Além da crítica do Homem x Máquinas, a minha preferida.
“Macunaíma passou então uma semana sem comer nem brincar só maquinando nas brigas sem vitória dos filhos da mandioca com a Máquina. A Máquina era que matava os homens porém os homens é que mandavam na Máquina.. Constatou pasmo que os filhos da mandioca eram donos sem mistério e sem força da máquina sem mistério sem querer sem fastio, incapaz de explicar as infelicidades por si. Estava nostálgico assim. Até que uma noite, suspenso no terraço de um arranha-céu com os manos, Macunaíma concluiu: - Os filhos da mandioca não ganham da máquina nem ela ganha deles nessa luta. Há empate.” (pg. 32)
Também vai criticar as macumbas falsas, e no capítulo IX, que vai ser escrito em linguagem formal, vai aludir ao fato da linguagem escrita e falada serem tão discrepantes, dificultando o entendimento.
“Enfim, senhoras Amazonas, heis de saber ainda que a estes progressos e luzida civilização, hão elevado esta grande cidade os seus maiores, também chamados de políticos. Com este apelativo se designa uma raça refinadíssima de doutores, tão desconhecidos de vós, que os diríeis monstros. Monstros são na verdade mas na grandiosidade incomparável da audácia, da sapiência, da honestidade e da moral; embora algo com os homens se pareçam, originam-se eles dos reais uirauaçus e muito pouco têm de humanos. Obedecem todos a um imperador, chamado Papai Grande na gíria familiar, e que demora na oceânica cidade do Rio de Janeiro - a mais bela do mundo, na opinião de todos os estrangeiros, e que por meus olhos verifiquei.” (pg. 67)
Não posso dizer que seja um livro fácil de ler. Há que se ter disposição e cabeça aberta, porque o primeiro entrave pode ser o vocabulário, muitas vezes rebuscado, e outras bastante simples. Tive que recorrer muitas vezes ao dicionário, e optei ao final fazer um contraponto entre o livro físico e o digital.
Mas gostei bastante de conhecer essa obra clássica que estava adiando há bastante tempo a leitura.
Ao final resolvi assistir ao filme, que foi lançado em 1969, e nunca tinha assistido, somente conhecia algumas cenas. Tinha um certo preconceito. E assisti na época certa, e logo após a leitura. Se não fosse isso, talvez não entendesse nada. Acharia com certeza, sem pé, nem cabeça. Achei bastante fiel ao livro, e foi um prazer rever Grande Otelo, Dina Sfat e Paulo José em cenas impagáveis.