Leila de Carvalho e Gonçalves 12/02/2022
Ícone Da Modernidade
Quando comecei a ler o texto do Antônio Fagundes, que abre o livro, eu sorri. Um sinal de reconhecimento pois ainda adolescentes, fôramos seduzidos por Macunaíma e não duvido que esse seja, ou será o seu caso. Aliás, uma reação bastante frequente a um livro original que ousa explicar de maneira divertida porque nós, brasileiros, somos o que somos.
No Posfácio, Tom Zé revela ter compartilhado o mesmo fascínio durante a juventude e sugestivamente define Macunaíma como ?uma sucessão de fábulas com dois personagens centrais: um herói sem nenhum caráter e a fala brasileira?. ?Uma riqueza literária? que ironicamente desenha o retrato de nossa gente, sem ?edificar moral?. ?Mário de Andrade não é La Fontaine. Não prescreve.? Cabe ao leitor, após a leitura, prescrevê-la.
Uma leitura de aproximadamente 300 páginas que, reza a lenda, foram escritas em apenas seis dias, no final de 1926, quando o escritor estava de férias na chácara da família em Araraquara. Porém, o professor de literatura Frederico Coelho revela na Fortuna Crítica que o manuscrito passou por diversas mudanças até ser publicado dois anos depois. O próprio Mário, em cartas da época e nos dois prefácios do livro que escreveu e abandonou, comentou a respeito e ainda trouxe à luz um detalhe curioso: apenas dois capítulos são ?de sua lavra?; os restantes foram baseados em lendas de povos indígenas do norte da Amazonia, publicadas no livro Von Roraima Zum Orinoco do etnólogo alemão Theodor Koch-Grünberg.
Outra singularidade da narrativa é a dificuldade de enquadrá-la num único gênero. Apenas em 1937, o autor deu seu veredicto: Macunaíma é uma ?rapsódia?, ?um termo do campo musical, usado para designar obras instrumentais de inspiração folclórica com liberdade de forma e modulação?. Uma liberdade cujo o propósito é tornar o Brasil ?um espaço fluido sem fronteiras?, isto é, ?desrespeitar lendariamente a geografia?, ?desregionalizar? o texto ao máximo, para conseguir ?conceber literariamente um país como entidade homogênea?.
Uma entidade homogênea que, segundo as antropólogas Virgínia Amaral e Aparecida Vilaça, expõe a saga de Macunaíma em busca de um amuleto perdido como o resultado das transformações estruturais sofridas pelos mitos, conforme eles são apoderados de um povo pelo outro, atravessando fronteiras étnicas, geográficas e culturais. Portanto, a obra pode ser considerada, ?uma versão paulistana e modernista? das mitologias dos povos amazônicos.
Finalmente, essa edição conseguiu superar minhas expectativas, ao apresentar a perspectiva de um indígena sobre o livro. Trata-se do texto Makunaima E Macunaímas, de autoria de Cristino Wapichana, músico, cineasta e escritor premiado. Resumidamente, sua postura crítica, em especial sobre a apropriação dos mitos indígenas não é apenas relevante mas absolutamente necessária diante dos retrocessos nos direitos dos povos originários do Brasil e dois exemplos são a paralisia na demarcação de suas terras e a falta de políticas de saúde e educação.
Boa leitura e parodiando Macunaíma: ?Xô, preguiça!??
Nota: Como de costume, da capa à diagramação, o livro está impecável e um dos destaques fica por conta das vibrantes ilustrações de Camile Stroesser. Para quem adquirir o e-book e quiser apreciá-las à cores, é preciso usar o Aplicativo Gratuito de Leitura da Amazon instalado num tablet ou celular.