Ana Sá 11/05/2023
"Macunaíma" é um livro curto, mas não é mole não!
Vocês conhecem a história da leitura com as baleias?
Uma vez, eu estava tendo muita dificuldade com a leitura de um livro, então uma amiga me disse: "Ana, certas leituras são como observar baleias. A gente fica lá, sentada em frente a um oceano onde nada acontece. Até que, de repente, salta uma baleia! Com alguns livros é assim: apenas uma ou outra ideia se mostrará bem evidente, mas muitas vezes elas fazem valer toda a experiência".
Eu gosto dessa história porque ela mudou a minha relação com livros desafiadores, e é verdade que "Macunaíma" foi para mim um livro desafiador. Entretanto, não seria justo afirmar que ler "Macunaíma" foi como observar baleias. Não! Primeiro porque é mais coerente falarmos em boto-cor-de-rosa, nativo da Amazônia, do que em baleias. Segundo porque esses botos que vemos saltar do livro Mário de Andrade não são raros. Eles são muitos! Então é como se a gente estivesse lá, na expectativa de observar a calmaria do rio, quando, prontamente, muitos botos sequencialmente desordenados não parassem de surgir! E vocês já viram um boto? Ele é sedutor, brincalhão e engraçado? São como "Macunaíma"! Um livro recheado de um mar de botos que bagunçam tudo, mas que nem por isso deixam de nos arrancar o riso!
Leyla Perrone-Moisés falou e disse: em Mário de Andrade temos uma obra não sobre "identidade", mas sobre uma "entidade" nacional. É realmente impressionante o quanto cabe de Brasis nas poucas páginas de ?Macunaíma?.
Na minha opinião, "Macunaíma" quase que é um livro mais para ser estudado do que lido. São tantas as dúvidas que saltam a cada página. São variados os elementos linguísticos, culturais, históricos e geográficos que nos escapam durante a leitura. Outros tantos são os pontos que nos causam curiosidade de aprofundamento e de debate (por exemplo, que leitura podemos fazer hoje do capítulo da macumba?). Uma edição com notas explicativas pode ser interessante para quem quer sair do livro com mais respostas do que perguntas.
Mas também na minha opinião, justamente por causa de tudo que listei acima, paradoxalmente "Macunaíma" é um livro sobretudo para ser lido, dessa leitura livre e anárquica! Esta é sim a obra de "um intelectual para intelectuais", como alguns defendem, mas cabe lembrar que Mário de Andrade fala de um Brasil real desafiando qualquer fio de realidade. "Fantástico", "Nonsense", "Surrealismo", "Fantasia", "Mito", "Folclore"... misture um pouco de tudo que você já viu em narrativas nacionais, de heróis e em romances de aventura e aceite que um gigante ou que uma espécie de piscina de macarrão simplesmente podem fazer sentido em São Paulo!
É curioso...
Esta narrativa mítica, mística, satírica, sarcástica, caricata, irônica, nos exige demais, mas nos entrega a leveza de boas risadas e de ótimas estórias! É tudo tão deliciosamente dinâmico no livro que mais de uma vez eu tive a sensação de "Nossa, eu já não tô entendendo como o Macunaíma chegou aí, eu não sei o significado de umas dez palavras desta página, mas isso tá engraçado demais!". Se a leitora aceitar que, mesmo perdendo, haverá qualquer coisa a ganhar ao abraçar esse herói sem nenhum caráter, a diversão virá!
Há livros que não semeiam memórias em nós. Esses passam e não deixam frutos. Há outros que, ao contrário, tatuam os detalhes das personagens e/ou do enredo na nossa mente para sempre. A meu ver, "Macunaíma" não é nem um, nem outro. Emprestando de Leyla Perrone-Moisés um dos sentidos possíveis da palavra "entidade", vejo "Macunaíma" como uma experiência transcendental. Ele se apossa de nós já nas páginas iniciais e depois o que nos resta é uma espécie de memória onírica dessa viagem. Eu tive um pouco de dificuldade com a leitura, então não conseguiria, de pronto, recontá-la de forma linear e coesa (mesmo com tudo que eu já sabia previamente sobre a obra!). Por outro lado, tenho na ponta de língua o que vi-senti-imaginei-inventei em cada passagem do livro. Minhas lembranças parecem ter estacionado mais no plano da emoção do que da cognição. Depois de aprender a ler com a baleias, agora eu também sei ler junto ao ritmo frenético dos botos. Recomendo o passeio!