Lucas 12/06/2022
Rendo-me: A razão sempre sucumbirá diante de um livro tão criativo, épico e maravilhoso
É um fato inconteste: a literatura como a conhecemos hoje, em seus mais diversos entendimentos, interpretações e associações, é fundamentada na mais importante obra do século XVII. O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha, obra lançada em dois volumes em 1605 e 1615, representa um marco divisor em múltiplos aspectos quando se fala genericamente em literatura.
Os dois volumes, que hoje são considerados como uma mesma obra, mas as quais foram concebidos um como a continuação do outro, foram criados pelo espanhol Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616). Dono de uma vida bem turbulenta (foi um soldado e depois arrecadador de tributos), ele perdeu a mão esquerda em guerras, ficou cinco anos recluso em Argel (Argélia) e foi preso novamente por quase dois anos em Sevilha (dessa vez por equívocos relacionados à sua atuação como coletor). Experiências tão diversas e profundas deixaram uma marca indelével: poucos autores em todos os tempos tinham tamanha capacidade narrativa, derivada não somente do espírito de um contador de histórias nato, mas simbolizada essencialmente por uma incrível habilidade argumentativa/discursiva.
Isso pode ser comprovado diante da perspectiva da sua obra-prima, representada na maioria das sinopses ou comentários mais breves acerca da obra: trata-se da história de um "fidalgo" que, afetado mentalmente pelos romances de cavalaria (comuns em meados de 1550), resolve aventurar-se pelo mundo em busca de aventuras, para proteger os oprimidos, donzelas e combater qualquer injustiça por ele presenciada. Um legítimo, assim pensava dom Quixote, "Cavaleiro Andante", um herói humilde e altruísta, que sai de sua vila na Mancha, região central da Espanha, para cumprir seu propósito, montado em Rocinante, seu simpático pangaré. Como todo romance de cavalaria que se preze, o protagonista precisa de um escudeiro para superar todos estes desafios que as andanças lhe impõem, aqui representado pelo também inesquecível Sancho Pança, montado em seu burro de "estimação". A motivação para estes imponentes desafios atende pelo nome de Dulcineia Del Toboso, a "musa" inspiradora de dom Quixote, rainha dos seus pensamentos, a sua "Beatriz", símbolo máximo de beleza e pureza, insumo da sua coragem, astúcia, força, garbo e tantos outros infinitos adjetivos.
A premissa, desse modo, é simples. Parece até frágil num primeiro momento imaginar que Cervantes concebeu uma obra com dois volumes que totalizam mais de mil páginas, o que era e é até hoje muito relevante, para tratar apenas de um "doido" vagando por aí, encontrando pessoas comuns e cometendo atos de heroísmo de validade (e sanidade) questionáveis. Mas se a literatura ao longo dos séculos demonstra que as ideias mais simples podem gerar as consequências mais maravilhosas, não há raciocínio mais correto para a narrativa que nos apresenta as andanças de dom Quixote, Rocinante, Sancho Pança e seu burrinho: é a simplicidade que, sob a pena de Cervantes, torna estes personagens tão inesquecíveis.
O que ajuda a "engrossar" esse caldo aparentemente simples e até ridículo é o propósito com a qual O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha foi concebido: uma sátira dos romances de cavalaria, que já vinham em decadência no início do século XVII. Neste tipo de obra, o tal cavaleiro é um apaixonado, normalmente por alguma princesa, e que enfrenta os mais bárbaros e místicos desafios para viver esse amor impossível. Era uma fórmula previsível em demasia e, com o crescente acesso do povo comum aos livros (intensificado com a invenção da máquina de imprensa em 1430 e sua posterior popularização), tais romances eram muito populares. É nessa popularidade, inclusive, que dom Quixote é fortemente influenciado: ele e suas aventuras simbolizam o impacto que atos narrados num "conto de fadas" causam quando vividos ou experimentados na vida prática dos indivíduos.
Estes "impactos" são a força motriz da narrativa naquilo que ela apresenta de melhor e pela qual é eterna: a sátira pretendida por Cervantes vira uma emaranhado de caricaturas, seja por meio dos personagens (as parcas vestimentas de dom Quixote, por exemplo) e de incontáveis situações cômicas. Nenhum outro livro, nem antes nem depois, causa tanto riso a quem lê. É simplesmente impressionante a forma com que Cervantes se apropria de situações corriqueiras em romances de cavalaria para as ironizar satiricamente. A lendária batalha de dom Quixote contra os moinhos de vento, referenciada em outros livros, quadrinhos e até mesmo em músicas, é apenas uma (a primeira) das dezenas de dezenas de outros "disparates" absurdamente cômicos. Há de se mencionar também os robustos diálogos entre os personagens, especialmente entre dom Quixote e Sancho, cheios de floreios e elegância (até mesmo nos momentos mais cômicos).
Mas se as aventuras de dom Quixote o tornam tão importante para a literatura universal (especialmente no que tange à língua espanhola), isso não se dá unicamente pela qualidade que Cervantes apresenta em suas linhas: há muita inovação aqui, a qual rotula o livro em seus dois volumes como o marco de virada da literatura dita medieval para uma abordagem mais moderna. O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha foi a obra que encerrou de vez a tendência poética e lírica: as grandes obras que vieram antes de Cervantes são majoritariamente poemas épicos e dom Quixote é todo ele narrado em terceira pessoa, apesar dos inúmeros sonetos existentes em suas páginas. Consequentemente, essa abordagem menos rebuscada ampliou ainda mais a sua difusão.
Reforça essa abordagem menos "sofisticada" e mais íntima a "voz" de um narrador que pessoaliza seu discurso, o que também cria um apego particular ao leitor. Mesmo que este narrador seja inominado (e nominar-se não é seu intuito), ele se apresenta em muitos momentos como um "tradutor" ou organizador das narrativas de Cide Hamete Benegeli, um árabe segundo a qual (pela perspectiva de Cervantes) é o escritor de boa parte das peripécias de dom Quixote e Sancho Pança. Tal narrador eventualmente discute a qualidade ou até mesmo a veracidade das descrições de Hamete, gerando muitos momentos cômicos sem que haja a narração de nenhuma peripécia "quixotesca". E, além disso, o narrador é o condutor das risadas, um excepcional "animador de palco" que jamais oculta os protagonistas, mas descobre por entre uma aventura e outra (ou dentro delas mesmas) frestas por onde brilha o seu, muitas vezes irônico e em outras vezes explícito, humor.
Outro aspecto inovador foi a presença do que hoje se pode chamar de "desvios narrativos" ou digressões, as quais são pequenas histórias ou discussões narradas e/ou protagonizadas por personagens secundários. Normalmente, elas não têm influência alguma na linha narrativa principal, mas servem para expandir uma descrição social de determinada época ou abrigam postulados próprios dos escritores. Sabendo que Cervantes foi o primeiro a promover esse tipo de escrita, fica cristalina a influência que o escritor espanhol exerceu em autores que vieram séculos depois, como Victor Hugo (1802-1885) e Fiódor Dostoiévski (1821-1881), só citando dois escritores famosíssimos por suas digressões. Mas em dom Quixote, estes desvios têm um objetivo simples: fazer com que a narrativa siga entretendo enquanto os protagonistas ficam num segundo plano. De uma forma mais direta, elas são mais presentes no primeiro volume, especialmente quando o narrador apresenta duas pequenas histórias, as quais tornaram-se marcantes: O curioso impertinente e a vida de um ex-cativo (numa clara referência ao período em que Cervantes ficou preso em Argel). Há dezenas de outras inovações trazidas por dom Quixote, as quais são identificadas por olhos mais treinados.
As digressões conduzem ao inevitável comparativo que se faz em relação aos dois volumes da obra. O primeiro deles (a qual traz os dois exemplos de digressões citados) funciona de uma forma mais lenta, com menos personagens e menos "ambientes" frequentados. Longe, muito longe de ser um demérito, a primeira parte das aventuras de dom Quixote apresenta ao leitor um relato mais focalizado nas justificativas para as andanças do protagonista e sua influência em seus familiares e amigos: a sua sobrinha e governanta e ao padre e barbeiro da vila, as quais exercem um papel importante em várias passagens. Além deles, é evidente que Sancho Pança, seu fiel escudeiro e vizinho, também possui um papel de destaque. De uma forma prática, enquanto a sanidade mental de dom Quixote é questionada frequentemente, a saúde neurológica de Sancho não é discutida: o que transparece é a sua enorme ingenuidade diante dos desvarios de seu amo. Juntos, dom Quixote e Sancho Pança constroem ali uma amizade inigualável na literatura, por mais que a vida andante lhes traga consequentes (e cômicos, óbvio) abalos.
O sucesso do primeiro volume foi inevitável e Cervantes lançou o segundo volume dez anos depois do lançamento do antecessor, em 1615. Mas às vésperas da publicação, chegou ao conhecimento geral uma versão "autônoma" escrita por Alonso Fernández de Avellaneda (não se sabe se este é seu nome verdadeiro ou um pseudônimo), a qual continua a história do primeiro volume a partir de "pistas" dadas por Cervantes que finalizam aquela parte. Ou seja, Miguel de Cervantes se viu às voltas com o primeiro caso de "bibliografia não autorizada" da história da literatura ou, melhor dizendo, a primeira "fanfic" que se tem notícia. O segundo volume, então, passou por várias revisões de última hora que geraram resultados expressivamente cômicos: nele, há influências literais e literárias do que foi desenvolvido no primeiro volume, bem como um aproveitamento hilário desta versão "apócrifa" do segundo volume. Além da diversão, salienta-se a habilidade com que Cervantes tratou ambas as abordagens, sempre como insumos para momentos de riso.
É importante observar que, de uma forma geral, percebi que é dado pouco crédito ao segundo volume d'O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha. E depois de lê-lo, não consegui compreender a justificativa disso: o segundo volume é hilário da primeira à última página, sendo mais dinâmico, sem praticamente nenhum desvio narrativo (o que não é necessariamente um mérito, reforça-se), com mais aventuras e com uma sutil mudança de personalidade de Sancho Pança, a qual amadurece e derrama em suas falas uma imensidade absurda de ditados populares e provérbios absolutamente eternos. Todo esse segundo volume é uma miríade de "rolês aleatórios" pelas entranhas da Espanha que parecem (e infelizmente não são) infinitos.
Muito provavelmente, todas essas características maravilhosas acabam sendo suprimidas em nome de razões "comerciais" contemporâneas, as quais promovem versões resumidas das histórias de dom Quixote. Se por um lado isso pode ser útil (para um público infanto-juvenil, por exemplo), por outro pode ocasionar uma "simplificação" injusta de todas as maravilhas que Cervantes legou à eternidade, representadas por versões condensadas que não apresentam um décimo da magnitude literária da obra original. Por isso, recomenda-se que o leitor tenha diante de si a versão integral do texto, cujas edições mais populares no Brasil são a da Editora 34 e a da Editora Penguin, esta última a qual se baseia a minha experiência de leitura. Com um ótimo trabalho de tradução de Ernani Ssó e textos de apoio nos dois volumes, ela oferece uma leitura mais confiável de cada vírgula das aventuras desse personagem tão essencial, através de um box lindíssimo. Minha única ressalva é com relação a diagramação: como são incontáveis as referências históricas (as quais, louvavelmente, Ernani Ssó não deixa passar sem comentar), creio que ficaria mais confortável ao leitor se as notas do tradutor ficassem no rodapé das páginas e não agrupadas no final do volume. Torna-se cansativo por vezes esse "ir e voltar". Este é um aspecto já recorrente em obras da Penguin, como Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha (1866-1909). Discordo de eventuais críticas que lhe são feitas em função do acabamento (frágil) das capas, pois isso torna o preço das obras mais acessíveis, mas este detalhe das notas particularmente me perturba um pouco. Mas a certeza de ter em mãos o texto integral de dom Quixote numa edição bonita e financeiramente acessível compensa tudo isso.
Mais de quatro séculos de existência fizeram com que dom Quixote fosse exaustivamente dissecado. Entretanto, hoje percebo uma discussão excessivamente relacionada à sanidade mental do protagonista e de Sancho Pança: afinal de contas, ambos eram doidos varridos mesmo? A leitura não fornece respostas explícitas a este dilema e isso deveria acabar na inocuidade. O que deveria estar sendo falado, louvado e eternizado são as diversas aventuras de dom Quixote e Sancho Pança, não apenas a do moinho dos ventos, mas também as vividas na Serra Morena; a conquista do elmo de Mambrino; as confusões numa misteriosa estalagem; as lendas da caverna de Montesinos; o curioso caso de "preconceito" envolvendo zurros de burros; a eterna busca de Sancho pelo governo de uma ilha; os incontáveis encantamentos e artimanhas dos magos; a "cabeça" encantada... Não há spoiler algum em mencionar essas peripécias; saiba o futuro leitor que muitas e muitas outras acontecem e é por elas que dom Quixote deveria ser lembrado.
Por mais "rodado" que o leitor seja, as mais de mil páginas que retratam a vida desses dois personagens trarão sensações por ele nunca vividas diante de um livro. O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha fala conosco através dos séculos, seja nas incontáveis influências em outros autores ou no sentido literal, porque a leitura dos seus dois volumes é uma perfeita "chave", capaz de desligar o leitor do mundo tangível que o rodeia. A conclusão, esta sim irremediável e indiscutível, é que diante de dom Quixote e de Sancho Pança, devemos abaixar e recolher as armas da razão para saborearmos o espetáculo que suas andanças nos reservarão para sempre.