Valter.Guedes 26/11/2022
Uma hilariante paródia de romances de cavalaria, uma verdadeira crítica social numa altura em que o poder espanhol vive uma crise decisiva, Dom Quixote é também uma obra comovente.
Sendo o protagonista um espelho da própria função de um artista, que combate os moinhos de vento da incompreensão do público por seu labor pela arte, ainda que esse vento mova os moinhos que combate. Quando se expõe como um louco o cavaleiro andante fascina, em outras é motivo de motejos quando demonstra querer levar a sério a sua própria interpretação da vida.
O protagonista, desiludido em suas ilusões, muito tem a ver com a turbulenta vida do seu próprio autor Cervantes, que foi ferido durante a vitoriosa batalha de Lepanto contra os turcos, e depois preso em Argel por cinco longos anos à espera de ser redimido. Episódios traumáticos que infelizmente foram seguidos por outros. Mas se ao longo de toda a sua vida Cervantes encontrou dificuldades familiares, profissionais e financeiras, estas não foram, sem dúvida, alheias à terna ironia e à fundamental bondade trazida às suas personagens, que, de uma obra de imaculada modernidade, fizeram uma inesquecível obra-prima de profunda humanidade.
O velho Quixote sonha com uma época mais nobre, mais mágica aos seus olhos. Ele não conheceu essa época de sonho, apenas a fantasiou de livros obsoletos e de contos de fadas que, mesmo em seu tempo, eram lendas, símbolos, parábolas tudo menos a realidade de um momento. A Espanha da época se encontra estrangulada por uma religião onipresente, onipotente e Cervantes a alfineta a cada página, tornando o indivíduo como uma representação de sua própria casa e morada.
Dom Quixote se recusa a ver as evoluções em andamento. Mantém os quatro cascos cravados no chão como um burro velho que se recusa a seguir em frente.
Abrir os olhos, ver a realidade de cara é desistir do seu sonho, é desistir da sua definição de felicidade, é perder o sentido da sua vida. É por isso que seu cérebro, que um olhar de fora poderia julgar falhando, consegue distorcer as realidades, os erros patentes que comete, os pesados contratempos que sofre para encaixá-los em seu mundo fantasioso, o seu querido mundo, onde julgar se possível a ele viver. Essa é a própria definição de bovarismo levado ao extremo.
Quem é Dom Quixote, senão nós mesmos que nas páginas de livros buscamos experimentar o prazer pelo sublime e que nos é proibido?