Dhiego Morais 05/03/2019Buick 8Sentado em um banco ao ar livre, já é final de tarde. O céu, manchado de matizes quentes; o silêncio reconfortante, cujas sirenes de polícia já haviam emudecido. Ali, bem em frente do banco dos fumantes se ergue um galpão fechado, raiado de frestas que não deveriam emitir qualquer brilho, não com as luzes apagadas e sem vivalma em seu interior. Um termômetro registra a acentuada queda de temperatura; o ar parece ainda mais gelado na escuridão aterradora do galpão B. Mas há um brilho. E por entre as frestas é possível enxergar a frente de um carro antigo, um Buick, e a lataria ostenta uma espécie de sorriso, uma expressão que não deveria aparentar ser tão humana... e real.
Buick 8 faz parte de um grupo de livros menos conhecidos ou comentados, isso, claro, entre a extensa e diversificada bibliografia do autor. Talvez isso se deva – em parte – pela eventual comparação da temática abordada na narrativa com Christine, já que nesse último, um clássico datado de 1983, King também situa a trama em torno de um carro sobrenatural. Ainda aproveitando-se a deixa, é bastante interessante relembrar aos leitores que em Milha 81, conto presente na antologia O Bazar dos Sonhos Ruins, existe a personificação de outro automóvel bizarro, uma espécie de van maligna.
“Chega uma hora em que a maioria das pessoas vê o contexto geral e se dá conta de estar fazendo bico não para beijar o destino sorridente na boca, mas sim porque a vida acaba de lhe enfiar uma pílula na boca, e ela é amarga.”
“Então não há nada de novo nesse tal de Buick 8? Por que me aventurar nessa história se são todas tão parecidas?”. E aqui chegamos a um ponto bastante relevante dessa resenha: excetuando-se a presença de um carro que foge dos padrões de normalidade, o Buick 8 não é uma nova Christine, assim como em Milha 81 nós não tivemos um novo Buick ou Christine. E eu te explico o porquê! Vamos lá!
Devo dizer que eu me aventurei pela leitura de Buick 8 sem saber muita coisa, apenas decidi que estava na hora e essa hora era o mês de setembro, em comemoração ao aniversário do mestre. Dessa vez, King nos estende a mão e nos guia diretamente à Pensilvânia, mais especificamente para o cotidiano da polícia estatual. É lá que a trama girará, e, por consequência, são pelos seus personagens que conheceremos o passado do regimento D.
Ned Wilcox é um jovem de dezoitos anos que perdera o seu pai, Curtis, enquanto trabalhava servindo à polícia, em um acidente terrível. Em busca de investigar quem fora realmente Curtis Wilcox, enquanto tenta processar essa ausência paterna e sua vida, que passava por intensas transformações, Ned se dirige ao regimento, por meio de uma série de visitas que não somente se tornaram frequentes, mas fizeram dele uma espécie de membro honorário, uma sombra do pai, porém não menos querida por todos dali.
Antes do nascimento de Ned, Curtis passou por uma experiência bastante peculiar: em um posto de gasolina, um Buick surge para abastecer. O aparente dono, o Homem de Capa Preta, sai de seu assento, soltando um “o óleo está bom” para o frentista e se dirige até o banheiro. De lá, nunca mais foi visto. Dessa maneira, a polícia é acionada e o veículo é apreendido. Entretanto, logo os policiais percebem que há algo de estranho, algo de sinistro no objeto de quatro rodas, que com o seu painel de enfeite e um motor que não funciona, zomba da realidade.
Como se não fosse o bastante, o Buick aparenta ser indestrutível: riscos e pneus furados se consertam sem muita demora. Bem, quando um policial desaparece, e quando a temperatura no galpão em que fora escondido cai, seguido por um show de luzes arroxeadas e pela abertura do porta-malas, somente então a corporação do regimento D compreende que há algo de muito errado com o carro abandonado.
“Vejo um mundo onde só existe causa e efeito, parecem dizer. Um mundo onde cada objeto é um avatar e não há deuses movimentando-se nos bastidores.”
O Buick não é uma Christine. Embora exerça algum tipo de pressão, de presença, feito mormaço maligno, visível e sabidamente agressivo, o Buick de nossa história não se comunica, muito menos se personifica sozinho. As personagens sabem que existe uma força aquém de seu alcance, de algo que não deveria estar ali, todavia, o carro parece confortável com a situação, uma figurinha colada na página errada do álbum, mas que se adaptou àquele espaço, ao mesmo tempo em que parece esperar. Esperar exatamente o quê?
Constituindo uma espécie de enigma insolúvel e suspeitando de que houvesse alguma ligação entre o Buick e a morte do pai, que vivera parte de seu tempo obcecado pelo carro, Ned embarcará em uma viagem ao passado pelas memórias de Sandy Dearborn, Shirley, Arky e demais policiais, que, aceitando-o como parte da família, abrirão seus corações e suas mentes na busca por aproximar o que foi Curtis de seu jovem filho.
Buick 8 é narrado estrategicamente, alternando entre o passado (o Então) e o presente (o Agora). Não satisfeito, não há um ponto de vista único, ainda que Sandy, Eddie e Shirley apareçam com mais frequência. É possível que esse ponto em especial não agrade a todos os leitores, mas é inegável que proporcione mais diversidade e uma visão mais ampla do que ocorreu entre a descoberta do carro esquisito e a chegada de Ned no regimento.
A própria história por trás da criação de Buick 8 chama atenção: quando retornava da Flórida, de carro (já que King não curte avião), Stephen parou para abastecer em um posto. Depois de usar o banheiro, um caminho que levava a um riacho lhe saltou aos olhos, e, ao acessá-lo, quase caiu nas águas, fato que poderia ter terminado bem mal. Matutando sobre isso e outras coisas, depois de terminar a novela The girl who loved Tom Gordon, ainda em 1999, em cerca de dois meses já tinha um rascunho do que seria Buick 8, mas, por fato do destino, naquele verão King sofreu o acidente de carro que quase tirou a sua vida. Somente em 2002, depois de realizar algumas pesquisas de campo – inclusive de muletas –, o livro finalmente foi concluído. Aqui, portanto, há uma carga emocional entremeada na história, não nos moldes de angústia e raiva e dores impregnadas em O Apanhador de Sonhos, mas ainda assim uma carga sentimental.
“Naturalmente quando há desejo, qualquer idiota pode ser professor.”
Para aqueles que aproveitaram a jornada em Revival, Buick 8 com certeza agradará o público fã da mente criativa do autor.
Buick 8 é sobre a fascinação do ser humano pelo sobrenatural, uma forma de meditação, como Stephen mesmo diz, sobre os acontecimentos da vida e a impossibilidade de encontrar neles um significado coerente. A vida é dura, muitas vezes cruel; costumamos perder muito, e cada perda leva um pedaço de nós, mas qual o sentido disso tudo? Nem sempre teremos todas as respostas e tudo bem se não tivermos, contanto que vivamos.
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