Paulo 18/03/2022
Ilusões a pó
Ainda estou impactado com este livro. Não sentia tanto prazer e deslumbramento desde a leitura de Dom Quixote, o melhor que já li. Carpeaux disse que Madame Bovary é a “maravilha do mundo” entre todos os romances. Ele tem razão.
A história é muito simples. Charles Bovary, médico e viúvo, casa-se com Emma, filha de um fazendeiro. Ao longo da história, o jovem casal mora em duas pequenas cidades fictícias do interior da França. Emma logo se desilude com a vida real de casada, pois esperava viver de acordo com as aventuras e ilusões românticas descritas nos livros que lera. Por outro lado, Charles, conformado e resignado com sua situação pequeno-burguesa, tem devoção incondicional à sua mulher. Eles têm uma filha, Bertha. Emma é uma mulher infiel que se relaciona sucessivamente com dois amantes: Rodolphe, um cafajeste galanteador rural, e Léon, um jovem romântico, escrevente e estudante de Direito. Emma possui compulsão por compras e se endivida com um comerciante-agiota até o ponto de levar a residência do casal à penhora, sem que Charles soubesse de nada. Desesperada e incapaz de saldar a dívida, ela se suicida ingerindo arsênico, deixando a família na mais completa ruína. Charles, no final, descobre os adultérios de Emma, ao encontrar as cartas que ela trocava com seus amantes. Desgostoso, falece sem deixar bens. Bertha passa a morar com a avó, que morre no mesmo ano. Uma tia se encarrega de cuidar dela, mas, por ser pobre, envia a criança para trabalhar em uma fábrica de fios de algodão.
A leitura desse breve resumo pode levar à sensação de banalidade e repetição do tema tratado no livro. Afinal, seria apenas mais uma história de adultério feminino na longa tradição literária que aborda o mesmo assunto, desde o “rapto consentido” de Helena de Tróia, aos “olhos de cigana oblíqua e dissimulada” de Capitu.
Mas Flaubert constrói algo maior, como um carpinteiro da realidade francesa. Não se trata de mais uma história de adultério, mas sim do descompasso entre as expectativas ilusórias e a realidade crua (“a grama do vizinho é sempre mais verde”) retratada na conduta de Emma, em contraste com a absoluta acomodação de Charles com sua condição medíocre. Há um realismo acachapante construído em frases curtas e estilo preciso. Absolutamente tudo tem seu lugar na obra-prima de Flaubert: a descrição das cenas, os diálogos, a construção da personagens, a extensão dos capítulos e a divisão da obra em três partes. Nada é supérfluo ou cansativo, mas harmonioso e coerente.
Emma é uma personagem multifacetada que vive em constante tensão entre sua vida real – tediosa, medíocre, interiorana, pacata, banal e modesta – e os delírios e sonhos extraídos da literatura de livros românticos e revistas parisienses que devorava, os quais lhe indicavam um caminho de luxúria, luxo, aventura, adrenalina e amores. Foi, em curtos espaços de tempo, filha obediente, esposa virtuosa, frequentadora da Igreja, amiga e inimiga de sua sogra, adúltera incorrigível, pródiga e perdulária, mentirosa contumaz, cruel e doce, depressiva e eufórica. Madame Bovary teve um marido fiel, dois amantes, uma filha, mas não amou ninguém. Ela possuía uma grande ambição, mas não tinha os meios necessários para satisfazê-la, “como se a plenitude da alma não transbordasse, às vezes, pelas metáforas mais vazias, já que ninguém, jamais, pode fornecer a exata medida de suas necessidades, nem de suas concepções, nem de suas dores, e que a palavra humana é como um caldeirão rachado no qual batemos melodias para fazer os ursos dançarem, quando, na realidade, gostaríamos de enternecer as estrelas”.
Assim, havia uma disparidade enorme de expectativas de realização pessoal entre Madame Bovary e Charles. O médico levava uma vida pacata, ciente de sua condição tacanha de médico, de suas limitações e do meio em que estava inserido. Sua devoção por Emma, a qual amava incondicionalmente, talvez justificasse sua “cegueira deliberada” em não perceber o que de fato ocorria com a mulher que dormia a seu lado. Ao contrário de sua mulher, Charles não possuía qualquer ambição, era limitado intelectual, financeira e sexualmente.
O completo desajuste entre a realidade e a mente romântica de Emma levou-a à ruína total. Ela nunca se satisfazia, caindo no tédio e enfado. Os versos de Cartola, em um “O mundo é um moinho”, traduzem com perfeição o destino da Madame Bovary:
“Ouça-me bem, amor
Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos, tão mesquinhos
Vai reduzir as ilusões a pó
Preste atenção, querida
De cada amor, tu herdarás só o cinismo
Quando notares, estás a beira do abismo
Abismo que cavaste com teus pés”
A inspiração de Cervantes, autor declaradamente lido por Flaubert quando escrevia o romance, se faz notar explicitamente no fato de Emma Bovary portar-se sob a influência direta dos livros românticos que lia. Dom Quixote correu o mundo em busca de aventuras imaginárias, enfeitiçado pelas histórias dos livros de cavalaria. Emma teve dois amantes e destruiu completamente sua família. Se o cavaleiro da triste figura, ao menos, teve seus momentos de felicidade e glória, Madame Bovary, por outro lado, teve um final digno das grandes tragédias gregas.