Vania.Cristina 18/08/2024
Todos nós somos Madame Bovary
Esse é um daqueles livros que possui inúmeras formas de se comunicar com o leitor, e é bem mais complexo do que pode parecer num primeiro momento. Sua escrita é fluida mas exigiu do autor um projeto intenso e árduo.
Para ajudar na compreensão dos contextos, fiz a leitura nessa edição da Martin Claret, com o apoio das notas do tradutor, Herculano Villas-Boas e li o prefácio de Adalberto Luis Vicente. No youtube, assisti, antes mesmo de ler o livro, a primeira video-aula que a editora Antofágica disponibilizou. Depois de terminada a leitura, assisti a segunda video-aula e li os textos de apoio da edição da Antofágica, de Vivian Villanova, Maria Rita Kehl, Claudia Amigo Pino e Norma Telles.
E tudo isso valeu muito à pena.
A história começa com o casamento do jovem médico viúvo, Charles Bovary, com a bela Emma, que rapidamente lhe rouba o protagonismo.
Emma era uma leitora voraz do que era chamado, na época, de livros para moças: histórias cheias de aventuras, paixões desenfreadas, casamentos e finais felizes. Quando se casa, Emma se frustra porque a realidade não é como nos livros. E a única saída que encontra é o adultério.
A premissa é super simples e a riqueza do livro está no estilo do autor e na forma como ele nos leva a nos envolver com a personagem, e nas inúmeras reflexões que podem ser feitas a partir daí.
O contexto é o da revolução industrial e o de ascensão da burguesia. Com o surgimento da classe média, surge também um novo tipo de família e uma nova condição para a mulher. Os casamentos deixam de ser por conveniência e passam a ser "por amor", e também uma exigência social.
À mulher cabe ser companheira, recatada e do lar, administrando os empregados mas sendo submissa ao marido e um ornamento da casa. Vejam bem, isso não existia antes do século XVIII. A mulher aristocrata e a do povo tinham maior liberdade quanto a sua sexualidade. Esse isolamento doméstico começa a ser imposto às mulheres conforme foi sendo construída a sociedade burguesa. Controlar a sexualidade da mulher passou a ser, então, uma questão pública, para que fossem preservadas as linhagens e as heranças do patriarcado.
O curioso é que essas mesmas mulheres se tornaram as leitoras mais assíduas, mesmo sem nunca terem frequentado a escola. Aqui temos uma das questões ambíguas da obra: Emma Bovary lê, e isso a empodera. No entanto, ao mesmo tempo, o que ela lê são histórias românticas, ilusórias, fantasiosas que a instigam a querer o que não pode alcançar.
Com nossos olhos contemporâneos é possível ver, na obra de Flaubert, crítica social quanto a questões de desigualdade de gênero. Mas em muitos momentos parece que o autor só tentava fazer ironia sobre o pensamento romântico, já que Emma é sempre exageradamente ingênua, em alguns momentos dissimulada, em outros cruel.
Ora torcemos por ela, ora queremos que ela pare de tanta besteira. Ora a entendemos , ora a achamos muito fria e tola. É difícil amar Madame Bovary mas é super fácil se identificar com ela. Ela é absurdamente humana, real e intensa. Suas paixões são sinceras, sua entrega é completa.
Sabe como Flaubert fez isso? Trabalhando minuciosamente o estilo literário, de forma obsessiva e inovadora. Ficou anos revisando o texto, eliminando palavras repetidas, aprimorando a conexão entre as frases. Ele não queria descrever, queria mostrar. Dessa forma, criou cenas totalmente imagéticas. A ponto do cinema surgir já bebendo em Flaubert. Quer começar a aprender a escrever roteiro? Leia Madame Bovary.
Flaubert se esforça para eliminar o narrador em terceira pessoa, com isso inova quando usa o discurso indireto livre. Não acompanhamos apenas os pensamentos de Emma, ouvimos através dos ouvidos dela, sentimos através de sua pele, acompanhamos sua respiração, o sangue em suas veias... Estamos no corpo dela nos momentos de prazer. O desejo dela move o romance e nos move.
E quando nada a satisfaz, estamos ao lado dela com una sensação enorme de vazio. Se ela é ingênua, irritante, imprudente, antipática, dissimulada, cruel... nós também somos. Não é a toa que Flaubert disse no tribunal, quando respondia a um processo por atentado à moral e à religião: "Madame Bovary sou eu"
Emma Bovary tem "traços masculinos" como a imprudência e a ousadia, e contesta, como afirma Claudia Pino, "um dos alicerces do mundo burguês: a pretensa felicidade do casamento."
Mas não espere que Flaubert seja piedoso com Emma, ele não é. Da mesma forma não é generoso com o leitor. Afinal, ele estava inaugurando um novo gênero literário, o realismo, e se recusou a idealizar personagens e história. Trata-se de uma tragédia, mas uma totalmente diferente da grega ou do drama shakespereano. A tragédia aqui está no isolamento social imposto à mulher, na repressão sexual explosiva (e Freud ainda não tinha publicado nada), no vazio da existência, e, acima de tudo, na hipocrisia da nova classe social burguesa, com seus mecanismos de poder voltados à acumulação de riquezas e à exploração humana.
Fiquem atentos a detalhes na obra. O uso dos espelhos, os movimentos corporais de Emma, a dança, os nomes de personagens... E sim, tem ironia, muita ironia. Mas Flaubert consegue fazer a tragédia superar a ironia. E isso cria intensidade.