Israel145 10/02/2016Uma descida ao inferno familiar norte-americanoReza a lenda que após ter seu 3° romance recusado pelas editoras, William Faulkner se isolou e concebeu um dos maiores romances da literatura norte-americana, sua opus magna, dando início à segunda fase da sua obra.
A princípio, a leitura de O som e a fúria não é de fácil e imediata assimilação. A história da decadência da Família Compson, outrora abastada e influente família tradicional sulista norte-americana, começa pelo ponto de vista de Benjamin, o filho caçula que nasceu com retardo mental. Faulkner usa uma narrativa não-linear, entrecortada por pensamentos bruscos e desordenados, no que parece ser um turbilhão de emoções inacabadas. Para trazer o leitor para o seio familiar, o autor traça as linhas iniciais do romance apresentando o mundinho dos Compson que desmorona visto pelo olhar imaturo de um idiota, o que chega a provocar certo cansaço no leitor mais tradicionalista, visto que a narrativa parece por vezes muito simplória.
Ao final da primeira parte do livro, que é dividido em 4 partes, a narrativa parece um pouco mais fluida. Nesse ínterim, o autor não se preocupa muito em explicar os motivos, as intenções e a história vão se contando por si só, atraindo (ou afastando) o leitor mais (ou menos) curioso.
O mundo de Benjamin, assim como todo o romance, é formado pelo lírico misturado com o grotesco, é o sonho misturado com a realidade, é a idealização misturada com a frustação. É a vida pulsando, cada vez mais rude e mais cruel. O reductum absurdum que o patriarca da família alerta um de seus filhos, Quentin, o protagonista da 2ª parte. O mundo visto por Quentin não difere muito do de Benjamin. Sua loucura não é de nascença, mas sim fruto da tradição auto-destrutiva dos Compson e de uma amor incestuoso por Caddy, sua irmã. Sem destino, vagabundando por uma cidade e perdido em meio a pensamentos imperfeitos (que o autor misturou sem piedade à narrativa) que só aumentam a sensação de angústia que o livro passa. Pensamentos imperfeitos e que são subitamente interrompidos como se nunca tivessem “sido pensados”. Prova da loucura iminente de Quentin? O peso que este carrega por receber o último quinhão dos Compson para se formar em Harvard como “a última esperança da família” e o seu amor incestuoso levam o pobre rapaz ao colapso. O recurso sensorial é usado e abusado por Faulkner para compor a narrativa. O turbilhão sensorial explode na 3ª parte (o odor da madressilva, a chuva doce, o chafurdo na lama, etc.) dando à história tons cada vez mais absurdos e por conseguinte, humanos.
A 3ª parte fica a cargo de Jason. Nessa parte do livro, Faulkner não lançou mão de recursos inovadores e a história, com uma profusão de personagens com nomes repetidos, chega ao seu clímax. Jason agora é o provedor da família, já que o pai morreu. E ele é a personificação do ódio, frustação, angústia e mesquinhez. Seu inconformismo tem como motivo principal a filha bastarda de Caddy (Quentin), criada pela avó com todas as regalias e sem propósito na vida e apresentada pela visão de Jason como “vagabunda igual à mãe”. A decadência familiar dos Compson atinge seu clímax com a criança bastarda expondo a falta de futuro e esperança para a família. O coração de Jason marcado pelo ódio, pelo racismo, pela mediocridade explode quando Quentin (sua sobrinha) desfere o golpe definitivo no seio familiar, implodindo de vez a estrutura decadente. O impressionante é que com esses recursos inovadores e brincando com o tempo na narrativa, Faulkner faz com que a história seja contada por si só, lançando mão da narrativa em 3ª pessoa apenas na parte final do livro.
Ódio, loucura, incesto, suicídio, racismo, vergonha, decadência, alcoolismo, mesquinhez, etc. Impossível listar a profusão de sensações, ações e situações degradantes apresentadas por Faulkner neste que é um dos grandes romances norte-americanos. Talhado por um gênio sem igual, observador impassível das famílias sulistas, crítico sagaz da sociedade humana, mais precisamente, a sociedade humana sulista norte-americana, Faulkner delineia uma mesma história vista com ângulos diferentes, com seu desenrolar convergindo para o que todos vivenciaram no dia a dia: a experiência humana em estado bruto. Crua, imunda e imperfeita. Um romance demasiadamente humano. Uma obra prima da imperfeição.