haeferwoods 22/09/2015
A sexualidade tem sido sempre parte da experiência humana.
Quando o livro faz um apanhado histórico sobre a manifestação multifacetada da sexualidade na história da humanidade, ele consegue provar que com a propriedade privada, o não-natural passou a ser natural (p.27). É extremamente relevante notar como a questão da sexualidade é indissociável da discussão acerca da ideologia religiosa. Precisamos, nesse caso, definir a “religião” para além do entendimento de uma fé específica ou de uma instituição religiosa, mas sim pela sua relevância social e histórica, analisando-a na sua competência de fenómeno.
“A perseguição a Joana D`Arc (1412–1431) é muito significativa do ponto de vista da história da opressão homossexual. Ela era acusada, na verdade, de bruxaria, tranvestismo e crimes políticos. Quando ela voltou a usar suas roupas masculinas, após ter prometido reformar-se, foi executada pelas autoridades” (p.40)
“Temos dois casos documentados de processos contra aqueles que eram chamados bruxos, um em 1022, e outro em 1114. O primeiro aconteceu em Orléans, e o réu era acusado de participar de orgias religiosas. O outro foi em Bucy-Le-Long sob acusações de rituais homossexuais” (p.39)
É importante demarcar que, nas sociedades fundacionais, a luta era contra a natureza, e as sociedades funcionavam maioritariamente sob matriarcados. A divisão sexual do trabalho se pautava em diferenças materiais, e a figura da mulher assumiu papel central no funcionamento da sociedade, justamente pela sua função material da reprodução. O “trabalho reprodutivo”, antes da existência do salário, era valorizado.
“Na medida em que o desenvolvimento tecnológico produziu riquezas materiais acima das necessidades básicas e possibilitou a acumulação, houve uma transformação fundamental nas relações humanas.” (p.25)
Do matriarcalismo às classes, de fato, muita coisa mudou. Existe uma relação onde podemos enxergar o porquê dessas mudanças: o funcionamento da infra-estrutura ideológica e da super estrutura material. Um fator importante a ser colocado, e que faz parte da infra-estrutura ideológica: o surgimento do monoteísmo.
“A criação de um só verdadeiro deus levou a destruir todos os resquícios das práticas religiosas matriarcais. Wainwright Churchill observou, em seu livro Homosexual Behavior Among Males, que dos 36 crimes punidos por morte no Código Mosaico pós-exílio, a metade era sobre atos sexuais. […] Churchill sugere que essa transformação moral radical era baseada, em parte, na necessidade dos judeus de se distinguirem de maneira decisiva das outras nações hostis que ameaçavam conquistá-los cultural e militarmente.” (p.31)
Podemos entender, então, que a instituição do cristianismo como religião patriarcal dominante foi fundamental para estabelecer uma infra-estrutura favorável ao capitalismo, que se mantém nas costas de milhares de mulheres, relegadas ao trabalho doméstico assalariado. Segundo as definições de Marx, podemos entender o triunfo da religião monoteísta como também o triunfo de uma ideologia dominante. Foi através dessa ideologia dominante que foi estruturada uma ideologia de gênero, para sustentar as opressões materiais direcionadas às mulheres. A identidade é uma forma do indivíduo se reconhecer dentro de uma ideologia dominante. A identidade, querendo ou não, é sempre imposta pela ideologia. Como Marx dizia, não é a consciência que determina a vida, mas a vida é que determina a consciência. A identidade feminina, por exemplo, foi estrategicamente construída para impedir que mulheres resolvessem sair de seus postos de trabalho, onde foram relegadas. Por isso mulheres são conhecidas como frágeis, submissas, incapazes. Se fosse parte da identidade feminina ser forte, corajosa, competitiva, seria uma ameaça para a sociedade capitalista patriarcal. Ao mesmo tempo, contra sua vontade, homens são ensinados a oprimir.
“O Gênero é um sistema de apartheid. Não existem dois gêneros, mas apenas um: as mulheres. O homem é humano. A mulher é não-humana. O objetivo da luta feminista não é que haja mil gêneros, mas que se destrua o gênero. Não que haja mais grilhões, mil grilhões, dentre os quais escolher com o qual me ‘identifico mais’, mas nenhuma corrente mais a nos prender. Terminar com esse sistema de apartheid que é o gênero, não reformá-lo, não ‘democratizá-lo’ e distribuí-lo: feminilidade para homens, masculinidades femininas… nenhuma dessas atribuições coercitivas. Nenhuma ilusão mais. O feminismo é a noção radical de que as mulheres são pessoas." (Heleieth Saffioti)
O livro faz uma análise histórica materialista acertada, porém invisibiliza um agente político fundamental: a mulher. Não há como falar de opressão homossexual sem falar de misoginia, assim como não há como falar de luta de classes sem citar a misoginia.
“Engels enfatizou que a monogamia das sociedades de classe sempre quis dizer, na prática, uma monogamia para a mulher e uma poligamia para seu marido.” (p.34)
De todas as citações de Engels sobre família, estado e propriedade, essa é a mais relevante que o livro poderia destacar. Porém, no capítulo referente a URSS, parece que o autor simplesmente esqueceu-se dessa afirmação. Para o feminismo, a sexualidade ganha destaque central, assim como o trabalho ganhou destaque central nas obras de Marx. Não é por mero acaso que, embora o trabalho seja o tema central do marxismo, a principal obra de Marx seja “O CAPITAL”. Quando o autor começa a falar sobre a “revolução sexual” implementada pelo governo bolchevique na Russia, por desonestidade ou ignorância, alguns fatos são ignorados. Na década de 20, a existência de creches e restaurantes estatais significou liberdade para as mulheres finalmente adentrarem os postos de trabalhos nas indústrias. Juntamente com o pacote de revolução sexual, que revogava todas as leis que condenavam atos homossexuais, também foram implementadas novas regras para o casamento, facilitando o divórcio, e o direito ao aborto. Porém, como não é a consciência dos homens que determina o seu ser, e sim seu ser social que determina sua consciência, os homens ainda encontravam “brechas” para dar continuidade a opressão machista. Com a facilidade do divórcio e do aborto, muitos homens se envolviam em relacionamentos breves, abandonando muitas vezes suas mulheres ainda grávidas. Em breve, o estado soviético não conseguia mais arcar com as despesas dos filhos do “amor-livre”, e precisaria ceder às reivindicações feministas que exigiam o fortalecimento da família e que os homens fossem obrigados a pagar pensão alimentícia. É como se a irresponsabilidade masculina tivesse forçado às mulheres a adotarem uma postura mais conservadora.
Como uma análise que se propõe marxista, no fim das contas, acaba tratando a sexualidade masculina da mesma forma que a sexualidade feminina, como equivalentes dentro do sistema de opressão? Quando o assunto é movimento LGBT, é difícil encontrar análises marxistas fiéis. Todas começam do mesmo jeito: O Estado, a família, e a propriedade, de Engels. Mas parece que, por vício da pós-modernidade, tentamos enxergar as opressões em separado, quase como setores diferentes. Não vejo muito sentido em tratar a luta LGBT como um setor a parte da luta feminista, é como invisibilizar anos de formação teórica feminista acerca da sexualidade. Vejo menos sentido ainda em agrupar diversos “setores” de opressão (“homossexuais, lésbicas, bissexuais e transexuais”) em uma única sigla, afastada da concepção marxista de classe e muitas vezes da concepção feminista de igualdade.