Arsenio Meira 03/08/2014
Cortázar e o universo caóticos dos sofás, formigas, cronópios e famas
Numa entrevista à Paris Review, Hemingway disse que o bom escritor precisa, sobretudo, de um detetor de porcarias embutido e à prova de choque. Queria dizer que o maior defeito de um escritor é a ingenuidade, a falta de senso crítico para filtrar tolices e inocências. O pecado da ingenuidade pode acometer, no entanto, alguns dos melhores escritores. Deste mal Cortázar jamais padeceu, penso.
O eco acachapante que advém da obra de Julio Cortázar está no contraste entre o tom neutro, factual do narrador e o absurdo da situação que vive. Ponha-se neste caldo mágico a delicadeza do escritor argentino, que neste instigante "Histórias de cronópios e de famas" fica mais evidente. Como se não bastassem tais atributos, Cortázar mescla humor, ironia e o tal elemento picaresco; a partir daí o que era eminentemente soturno ganha uma inusitada claridade, estranha, é verdade, mas nem por isso menos reluzente, como neste trecho do conto intitulado (o título per si, faz rir) "propriedades de um sofá:
"Em casa de Jacinto há um sofá para morrer.
Quando a pessoa fica velha, um dia a convidam a sentar no sofá que é um sofá igual a todos mas tem uma estrelinha prateada no meio do
encosto. A pessoa convidada suspira, mexe um pouco as mãos como se quisesse afastar o convite e depois senta no sofá, e morre.!" (p. 87).
O que ressai evidente é que, de verdadeiramente inesperado e fantástico é a quebra da regularidade, a quebra de um rotina aparentemente normal, não fosse a origem dos Cronópios e dos Famas. Em alguns contos, a tragédia será pressentida pelo fato de que o narrador perde o controle dos nascimentos, como se um limiar numérico fosse ultrapassado e deflagrasse o desastre; o inusitado de algumas situações, reações aparentemente sem sentido ganham vulto, e a Arte Literária idem.
São microcontos, e não obstante, a capacidade de condensar tudo isso em dois ou três parágrafos, alguns recheados com os ingredientes acima citados, é algo impressionante. O sarcasmo sem delongas, a morte (ah a morte sempre abordada pelo astuto argentino) são duas provas da versatilidade do grande contista que Julio Cortázar foi. O nonsense, o picaresco encontraram uma pista de pouso segura e secreta no discípulo de Borges e Bioy, pois que Cortázar inaugurou o caos contemporâneo, e foi da arte literária um mestre.