Coruja 28/01/2021Eu estava há tempos de olho em
O Homem Ilustrado, talvez um dos livros mais lembrado quando se fala em Ray Bradbury - junto com Fahrenheit 451 e Algo Sinistro Vem Por Aí. Ano passado ele saiu numa bela edição da Biblioteca Azul e não tive dúvidas de ir atrás, ansiosa por juntá-lo aos outros títulos do autor que tenho na estante.
Bradbury tem uma mistura de linguagem lírica extremamente evocativa e comentário social implícito que muito me atraem. Suas histórias respiram muito do clima político da década de 50 e do medo da guerra nuclear - estávamos, afinal, no auge da Guerra Fria -, mas sua percepção desses problemas continua tristemente atual. Os avanços e abusos da tecnologia, censura e perseguição governamental, imperialismo cultural, racismo e segregação são todos temas que surgem entre esses contos e que rendem muita reflexão.
O Homem Ilustrado tem uma narrativa em moldura, começando com um jovem conhecendo o personagem do título, cujas tatuagens, espalhadas por todo seu corpo, têm o poder de contar histórias e até mesmo prever o futuro. Cada um dos dezoito contos que surgem na sequência é o enredo dessas tatuagens e eles vão de situações absurdas a cenas bem prosaicas; do fim do mundo a infinitas viagens espaciais, da completa perda de fé no universo a momentos de esperança e demonstrações de amor que quase nos partem o coração.
Costurando essas narrativas há o tema da própria natureza da imaginação, do encantamento por trás da criação e contação de histórias - razão pela qual o jovem narrador não consegue despregar os olhos do que contam as tatuagens do homem ilustrado, mesmo quando recebe a advertência de que ele pode não ficar muito satisfeito com o que verá no fim. É interessante também que essa natureza é vista como uma faca de dois gumes, especialmente quando manuseado por crianças.
Contos como
A Savana, em que um berçário que usa realidade virtual é transformado num safári infernal pelas crianças da casa; e
Hora Zero, em que uma brincadeira de invasão dimensional esconde propósitos mais sombrios, traz-nos crianças cruéis e vingativas, que não aceitam bem os limites que adultos tentam lhes impôr. Não há crianças em
O Visitante, mas as ilusões brevemente criadas por um telepata numa colônia marciana de doentes desenganados levam a conflito e morte.
Em compensação, as ações de um pai tentando levar a família a partilhar uma inesquecível memória de uma viagem ao espaço no belo
O foguete - meu conto favorito em meio a tantos excelentes - pintam a imaginação como algo libertador, que une os personagens e nos acolhe também. Essa é uma das histórias mais esperançosas da coleção, uma das poucas a terminar numa nota realmente jubilosa.
Considerando o contexto histórico em que eles foram originalmente publicados - muitos deles em revistas especializadas antes de reunidos na moldura do homem ilustrado - não é surpresa o ponto de vista melancólico, muitas vezes bastante pessimista, nem o humor satírico da maioria dos contos. Bradbury não foge de polêmicas; vai da religião a política num passar de páginas, e, por mais fantástico que sejam suas viagens a Marte e Vênus ou mundos ainda mais distantes, está sempre com os dois pés bem firmes em questões universalmente humanas.
Dito tudo isso,
O Homem Ilustrado não apenas é leitura obrigatória para seus fãs, trazendo alguns de seus melhores trabalhos, como também serve de excelente porta de entrada para quem nunca leu Bradbury: primeiro porque contos são sempre um bom início na bibliografia de qualquer autor, segundo porque os que compõem essa coleção fornecem uma boa amostra do estilo e dos temas que emergem constantemente em sua obra, além de passear pelos diferentes gêneros com que ele experimentou ao longo da carreira. Para se deliciar com um mestre do ofício, sem dúvida.
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