Bruno 16/03/2014Flatland, de Edwin A. Abbott, é um livro esquisito. Quando eu li a sua sinopse pela primeira vez, já imaginava algo que parecia criativo, simplesmente pela sua proposta pouco ortodoxa. O seu protagonista vive em uma terra plana, de duas dimensões, com todas as consequências que isso acarreta. Ele é um quadrado, e na primeira parte do livro nos explica as dinâmicas físicas e sociais de sua terra.
Como, por exemplo, há um sistema quase estamental onde polígonos com mais lados são considerados mais inteligentes e, portanto, mais importantes; como sobre os triângulos isósceles são usados como operários e soldados, pelo seu ângulo pequeno que permite uma ponta mais, bem, pontiaguda. Quanto maior o seu ângulo, maior o seu cérebro. E, como você não pode ver nada além de uma linha a sua frente (afinal, eles não se podem ver como polígonos em suas áreas pois isso implicaria a existência de uma terceira dimensão), eles só podem supor através de algumas artes como cálculo, ou o vulgar “toque”, para sentir as arestas e vértices de outro polígono e, através do cálculo do ângulo, presumir o seu número de lados e portanto a sua posição na escala social.
Não é tão complicado quanto eu acabo fazendo parecer — o Quadrado, que narra a história e explica o seu mundo em primeira pessoa, tem uma voz incrivelmente didática que explica tudo de forma a qualquer um de nós, seres tridimensionais da “Spaceland”, entenda com facilidade.
É nessa explicação de seu mundo que Flatland apresenta o seu valor como sátira social. Presumidamente uma sátira política-social da Inglaterra Vitoriana, onde e quando foi escrito, o livro apresenta através dos relacionamentos entre polígonos antropomorfizados uma dinâmica social excludente, classista e chauvinista. Em um primeiro momento, é de estranhar como o Quadrado conta tão tranquilamente a respeito de um mundo que pareceria para qualquer um lendo agora um tanto quanto distópico; como ele defende veementemente, como se fosse a coisa mais natural do mundo, assuntos como a eugenia de triângulos isósceles, o isolamento do que chama de “o sexo frágil”, e a adoração inequívoca que tem para com o pensamento racional dos Círculos (polígonos tão importantes e com tantos lados que mal parecem ter lados mais, o que os aproxima de uma circunferência).
Eventualmente, o Quadrado sonha (e é aí que começa a segunda parte, os acontecimentos propriamente ditos) com uma outra terra, chamada Lineland. Lá, os habitantes são pontos e segmentos que se movem no comprimento de uma imensa linha, sem noção alguma do que é largura ou altura — uma terra em uma dimensão. Depois de tentar explicar ao Monarca de Lineland a natureza das duas dimensões, vê-se após acordar na situação oposta: um ser misterioso, que se chama “Esfera”, tenta lhe explicar a natureza de uma mística terceira dimensão. Assim como o monarca de Lineland é condescendente para com ele, julgando-o insano, o Quadrado assim trata o poliedro que, para convencê-lo manda-o à terceira dimensão, onde ele tem a epifania que mudará a sua vida.
Os acontecimentos em si não são grande coisa — creio eu que a natureza da ambientação, da narração e dos temas abordados acabam se destacando mais do que o que efetivamente acontece na história. Flatland acaba sendo uma história sobre não manter a sua cabeça fechada às novas possibilidades, como os membros de Lineland e Flatland, incapazes de compreender a natureza de uma dimensão acima da sua, acabam sendo para com aqueles que tentam lhe mostrar o que é supostamente a verdade.
A sociedade chauvinista de Flatland, como me referi mais cedo, é presumidamente um modo de satirizar e provocar a sociedade do tempo da Inglaterra. Como desconhecedor, de fato, de como era a sociedade vitoriana, não posso fazer um julgamento de quão bem ela foi representada. Mas percebe-se que, por baixo das camadas (ou, digamos, da camada) quase caricata da sociedade de Flatland, alguma alegoria foi encaixada, e não completamente sutil. Temos um pouco de história quando o Quadrado explica a natureza da Revolução Cromática e como a cor foi banida, após desafiar a estabilidade social de Flatland e prejudicar o poder soberano dos Círculos; e também é difícil ignorar a situação feminina nesta sociedade na qual, por serem linhas, são tratadas como o mais inferior dos seres; e, pelo mesmo motivo, são ao mesmo tempo as mais fisicamente perigosas.
O livro é curto, com pouco mais de oitenta páginas, e por isso não há tanto espaço para extrapolar as memórias do Quadrado — mas, ao mesmo tempo, o livro tem o tamanho bem apropriado. Ao final da história, sentimos que, se estendesse um pouco mais, talvez ficasse cansativo. E, até para aqueles que não se dão bem com a matemática, não deixem os nomes, polígonos e geometria darem medo. Não é nada complicado.
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