Leila de Carvalho e Gonçalves 12/07/2018
Discurso Eslavófilo
Ao lado de "Madame Bovary", de Gustav Flaubert, e do pouco conhecido "O Sobrinho de Rameau", de Diderot", o livro "Diário do Subsolo", de Dostóievski, disputa o privilégio de já apontar para o Modernismo na literatura. Entretanto, discussões a parte, é indiscutível sua influência na obra de Nietzsche e nas teorias de Freud assim como em "Metamorfose", de Kafka, e "O Complexo de Portnoy", de Philip Roth. Nem mesmo o cinema passou ileso, o que seria de "Táxi Driver", de Scorsese, e de boa parte dos filmes de Woody Allen sem ele.
Escrito em 1863 e publicada no ano seguinte, sua narrativa pode ser encarada como um aquecimento para "Crime e Castigo" que veio a seguir. Aliás, ambos enredos compartilham um protagonista solitário, irrequieto e irritado numa São Petersburgo cruel e sórdida. No entanto, "Diário do Subsolo" possui um tom menos tolerante, talvez reflexo de um momento especialmente conturbado na vida de Dostóievski, logo após seu retorno do exílio e à beira da morte da esposa.
Seu herói ou anti-herói é um burocrata sem expressão que encerrou sua carreira ao herdar uma pequena herança com a qual sobrevive. Quarentão, ele vive às turras com um servo e durante seu relato dirige-se a uma plateia imaginária a quem trata ora de você ora de "senhoras e senhores". Durante cento e tantas páginas, ele vocifera suas ideias reacionárias e antipatias num discurso eslavófilo que alterna entre vaidade e vergonha em busca da auto-afirmação e do reconhecimento social. Enfim, ele condena o capitalismo industrial, a racionalidade científica e qualquer tipo de modelo matemático que preveja o comportamento humano.
Dividido em duas partes, na última, ele descreve cenas de sua vida que considera perfeitas para exemplificar seu fracasso. Revelando inveja, uma infância e adolescência problemática, ele aborda o emprego que deixou para trás, revisita velhos amigos e envolve-se com uma prostituta, deixando claro ao leitor que que é ele o único responsável pelo inferno em que vive, aprisionado pelo seu próprio caráter. O crítico norte americano David Denby, chega compará-lo a um Hamlet rancoroso, capaz de destruir a si mesmo e o mundo à sua volta na defesa de suas convicções.
Porém, para finalizar, escolho Sartre que defende a ideia de que todas as filosofias materialistas apresentam erroneamente o homem como um objeto, uma pedra. "O homem do subsolo comprova que o ser humano é insondável, incognoscível. Dada a oportunidade, ele pode negar que dois e dois são quatro, pois o simples direito de negar o óbvio pode ser mais importante do que o benefício de reconhecê-lo."