MatheusPetris 15/02/2024
Uma certa tendência contemporânea (ou nem tão contemporânea assim) busca, a todo custo, um aperfeiçoamento pessoal, uma evolução ininterrupta em vistas a atingir a dita “melhor versão”. Discurso este cooptado (e reduzido a retalhos superficiais) por coachings e seus derivados, já foi base de correntes filosóficas (utilitarismo, por exemplo), onde tudo que importa é o resultado, só se age por alguma razão superior (fim), isto é, a finalidade (individual e social) importa mais do que o meio, o caminho. Essa finalidade é aperfeiçoar e fazer crescer, via razão, a sociedade. É o que o patético ex-funcionário público, autor destas memórias — escritas do subsolo, ou seja, da alienação social, do isolamento e de como foi engolido por ele próprio (acima de como foi engolido pelo desprezo alheio) — critica de forma jocosa. Rubens Figueiredo, ao analisar via contexto histórico-social, consequentemente, político, acredita que Dostoiévski crítica certas correntes filosóficas da época por meio da voz de seu memorialista.
Apesar de começar por essa possibilidade de leitura, não quero me ater a ela, quero pensar mais em termos de composição. Porém, antes disso, aquilo que Figueiredo chama de “a retórica de desafio contra um interlocutor invisível”, servirá de introdução ao ensaio. É possível olhar para essa “ofensiva retórica” em dois sentidos: o externo, isto é, o político, o texto como crítica ao seu próprio contexto; o interno, isto é, a composição de personagem, o texto por ele mesmo.
Esse personagem e narrador (testemunha), que se define como um homem doente — a raiva por todos atravessa pela consciência da sua subjetividade e da sociedade como ela é e pretende ser —, diz que “ter consciência demais é uma doença, uma doença de verdade”. Similar aquilo que Italo Svevo afirma: “A doença é uma convicção e eu nasci com essa convicção.” O narrador vai por outra via: “O sofrimento, afinal de contas, é a causa única da consciência”. Svevo parece ser assertivo no que concerne a este personagem (mesmo que em outro romance, de outro contexto, país etc.), afinal, ele é mais doente que consciente. E é aqui, neste ponto, que implode a refinada ironia de Fiódor Dostoiévski. Afinal, toda essa verborragia do personagem — contra a sociedade e o motivo de seu isolamento — , redunda em sua puerilidade, um verniz sob o excremento.
Apesar do personagem afirmar que suas memórias não são ordenadas, sistemáticas, ele próprio diz mentir (e se contradiz consciente e inconscientemente — contradição que também carrega ironia), então, primeiro, como acreditar no narrador em primeira pessoa (memorialista ainda) e, segundo, como acreditar em quem reiteradamente diz estar brincando? Há algo no contexto de publicação e escrita da novela que nos lança, enfim, a composição dela.
Segundo se sabe, Dostoiévski publicou essa novela em duas partes, pois foi publicada em um periódico da época. Essa necessidade em se dividir a novela em duas partes, fez com que Fiódor a escrevesse estruturalmente em prol disso. Ou seja, tal “restricão”, contribui também aos efeitos do livro e a composição do personagem. A primeira parte é basicamente um manifesto filosófico (barato, insípido) onde o personagem tenta explicitar suas ideias sobre seu isolamento e seu ódio soberano ao meio social. A segunda parte diz respeito a três anedotas de sua vida na juventude, que servem como justificativa para a sua filosofia barata.
A primeira delas, é um simples episódio onde se sente desrespeitado por um guarda/policial por um motivo banal. Nutre um ódio e o plano de uma vingança por dois anos. A grande vingança: trombar com ele sem desviar — ele nunca fora reconhecido pelo guarda, era ignorado. Ou seja, desejava não ser desprezado. A segunda, é um jantar com colegas em que se convida. É humilhado por todos, insiste em continuar, se embriaga, e é alvo de chacotas cada vez mais cruéis. É como se decidisse ser desprezado ainda mais. A terceira, em decorrência desta última, faz com que sua planejada vingança (dar uma bofetada no anfitrião do jantar) acabe com ele na cama de um prostíbulo. Bêbado, se sentindo humilhado, tenta humilhar a prostituta a todo custo. Ela não entende como chacota, ele entrega a ela seu endereço e depois se arrepende. Os próximos dias são a ansiedade de vê-la: por se sentir arrependido, pois ela irá ver a falsidade por trás daquele pseudo discurso moralizante vindo de alguém nobre, é, na verdade, vindo de um pobretão odiado até por seu criado; e a segunda, por sentir desejo por ela, por querer algum outro humano perto dele, que algum pelo menos o respeite.
É o narrador quem fala, “era cada vez mais incômodo e aflitivo”", porém, somos nós, leitores, quem sentimos isso no decorrer dessas anedotas. Aqui, sim, Dostoiévski pode se colocar diretamente no texto (“Olhem, eis aqui meu efeito”) e não na questão política. E eis aqui, nessa convergência entre as partes (a introdução, o ensaio pseudo filosófico e as anedotas), que reside a ironia absoluta. No que parece ser a causa do desprezo do personagem pelo social, se revela como o desprezo dos outros por ele como passível de justificativas. É como se ele alimentasse esse desprezo (e se alimentasse dele também). Sua figura patética não se encontra apenas no homem de meia idade que escreve essas memórias, mas também no jovem desprezado por todos. Esse homem não é respeitado nem pelo próprio criado. Se considera um homem com a inteligência acima da média, acredita que ninguém reconhece sua sabedoria, justifica a si, seu isolamento também dessa forma... Mas, na realidade, a própria estrutura do livro, diz o contrário. E isso é reforçado pelas anedotas individualmente.
A conclusão da última anedota, na qual a visita da prostituta o faz desabafar (em sinceridade mesmo) suas misérias (financeiras, morais, subjetivas), lhe lança, de vez, ao subsolo como um rato. Ser impiedoso com ela — afinal, um alvo fácil, prostituta nova —, como a vida e os outros eram com ele, o faz culpar ela própria pela angústia da visita (que ele próprio induziu), como se a culpa por ele estar onde está, fosse exclusivamente externa. A ironia de um homem tão desprezível quanto ele, tentar salvar uma prostituta (ainda que em tom de ironia por parte dele, não percebendo a outra ironia a que é alvo no final das contas) e conseguir ser ainda mais humilhado, é o cadeado do subsolo.
Essa densidade psicológica delineada até aqui, tão cara a Dostoiévski, é um primor da composição do livro (tanto em sentido macro quanto micro). O efeito estranho de que fala o romancista russo de sua própria obra, o seu “tom brutal”, produz um efeito de incômodo, de perturbação ao longo do livro de forma, sistematicamente, gradativa. A passagem para a segunda parte, às anedotas, principalmente do jantar em diante, provoca uma vergonha, uma pena para nós, leitores, por esse personagem, que chega ser impossível não pausar a leitura e respirar para não ficar enjoado.
Realmente há um interlocutor (mesmo que invisível) sendo referenciado como aponta Figueiredo, embora o personagem assuma que as memórias não foram escritas para serem lidas. A descrença do personagem-narrador no ser-humano (corrompido de forma imanente) parece apaziguar seu ódio, como se fosse também intrínseco a ele. No fundo, é uma metralhadora desgovernada que atinge alvos (mesmo em balas perdidas), mas, na realidade, parece ser uma justificativa para si próprio.
Por mais que essas críticas realmente tivessem alvos — e isso não importa tanto assim —, ela redunda em nada, pois esse personagem anula sua próprias reflexões (pela contradição e pela estrutura do livro), ou seja, se há alguma crítica, ela parece residir muito mais na veia pseudo-intelectual do personagem-narrador — tal como o Machado de Assis contista de Papéis Avulsos, principalmente do conto Teoria do Medalhão, curiosamente, junto de Memórias Póstumas de Brás-cubas, indica também a virada de fases do escritor (num olhar crítico evolucionista), tal como esse livro de Dostoiévski —, ou seja, na intelectualidade de possíveis figuras, nível mais micro, do que em filosofias de época e ideologias, nível mais macro.