spoiler visualizarRick Shandler 28/07/2022
A Peste - Albert Camus
Uma peste se alastra. De início, grande parte dos moradores da cidade de Orã nem percebem. Quando percebem, dão pouca importância. Mesmo com o acúmulo de corpos alguns seguem negando a peste e outros, pior ainda, passam a tirar vantagem e lucrar com ela. Apesar de escrito em 1947, soa um pouco atual, não? Camus, em sua obra-prima nos entrega o mais refinado de sua filosofia do absurdo e, de forma surpreendente, antecipa o que vivemos hoje.
Chega a ser assustador rever o que acabamos de passar em um livro escrito há quase 80 anos. O negacionismo, a dor da perda, o distanciamento, a entrega em prol do coletivo. O livro é repleto de personagens que representam, sob o olhar do absurdo de Camus, os mais diferentes espectros de uma tragédia como a peste, a COVID-19 e acima de tudo a ascensão nazista.
Sim, A Peste é uma alegoria para ocupação nazista da França. Isso leva o livro a um outro patamar. Perceber essa alegoria nos faz interpretar cada parte do livro de forma totalmente diferente. E o pior, tudo faz muito sentido. A forma como regimes fascistas ascendem ao poder é idêntico a uma peste. De forma sorrateira vão se enraizando, fazendo suas vítimas, expandindo-se, cooptando parceiros. Trazem dor, separam famílias, criam o caos. A resistência a esses regimes, assim como à peste, é uma tarefa árdua, contínua e ingrata, visto que aqueles que combatem esses males se colocam em grande risco.
Por fim, a forma com que Camus encerra o livro é daquelas que perseguem o leitor pro resto da vida: ?Na verdade, ao ouvir os gritos de alegria que vinham da cidade, Rieux lembrava-se de que essa alegria estava sempre ameaçada. Porque ele sabia o que essa multidão eufórica ignorava e se pode ler nos livros: o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada. E sabia, também, que viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz.?
Alguns ratos já estão à vista por aí. Tem de estar atento. Tem que ler.