Ana Aymoré 20/07/2020A peste que mata e o viver empestadoO que pode a ficção nos ensinar sobre a vida? Transitando, há um bom tempo, entre as veredas da literatura e da história, por gosto e por ofício, muitas vezes voltei a essa questão, seja para ensinar, seja para aprender sempre um pouco mais. E a cada dia mais me convenço que a evasão da realidade empírica, que é o primeiro movimento proporcionado pela leitura de uma obra literária, é, ou deveria ser, completado pelo movimento de retorno à essa mesma dimensão da nossa experiência, do vivido e do testemunhado. Mas retornamos ao nosso destino, como os heróis dos contos de fada, munidos de um talismã ou uma bússola: a literatura, que talvez não tenha o poder de transformar diretamente o mundo, tem, em contrapartida, o poder de nos transformar.
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Mesmo instintivamente sabemos disso, e por isso temos a necessidade vital das histórias inventadas. Desde que a covid19 deixou de ser o eco distante de um flagelo exótico, e passou a pautar nosso cotidiano, o interesse por livros que tratam, de forma mais ou menos realista, das epidemias e suas consequências para nós como indivíduos e como corpo coletivo, dispararam. Entre eles, é claro, A peste de Camus, publicada originalmente em 1947, teve uma ascensão imediata ao primeiro lugar - curiosamente, seguido de um romance fundamentalmente alegórico, que é o Ensaio sobre a cegueira, de Saramago.
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Acontece que, como em todo grande título da literatura, o romance de Camus nos fala sobre o flagelo que se espalha sobre uma comunidade e sobre suas consequências mais diretas, todas elas percebidas diretamente por nós hoje - a dor, o luto, o medo, o sentimento de exílio, a sensação de aprisionamento, a espera incessante, o desamparo, a perda da noção de tempo, a saudade de pessoas e lugares, a crise econômica, as conversas de estátuas dos rostos mascarados - mas também, ao fazer a crônica de uma peste fictícia, nos provê de outras formas de significação sobre o que é viver (na acepção de Tarrou, uma das mais belas personagens do romance) "empestado", e sobre como escaparmos às pestes mais duradouras e contínuas, que matam o nosso espírito: "Pouco a pouco o doutor se dissolvia no grande corpo uivante, ia percebendo que aquele grito, pelo menos em parte, era também dele. Todos haviam padecido juntos, na carne, e na alma, férias difíceis, exílio sem remédio e uma sede nunca satisfeita. Entre pilhas de mortos, campainhas de ambulâncias, avisos do que se convencionou chamar destino, marchas aflitas e enormes revoltas nos corações, um grande rumor persistia em correr e alertar aqueles seres atônitos, dizendo-lhes que era preciso achar a verdadeira pátria."