Ana :) 22/05/2024
Capitu não traiu
A obra é inteiramente realizada sob a perspectiva de Bentinho, um homem ligado ao direito que tem a habilidade de manipular a verdade em prol de sua própria narrativa para justificar seus ciúmes. Traçando uma comparação, analisemos Otelo, uma história de um amor envenenada pelo ciúme, onde o protagonista apresenta traços de personalidade imaginativos e obsessivos assim como Bentinho.
?A mentira é muita vezes tão involuntária como a respiração.?
Bentinho teve a possibilidade de esconder o próprio perfil enquanto traça Capitu como passível de trair, sem que nos forneça mais evidências do que apenas sua perspectiva de histórias embaralhadas em sua cabeça e envelhecidas com o tempo
A verdadeira traição foi de Bentinho com o leitor. Um personagem romântico e tão preso em sua própria percepção que não percebe que a maneira como os outros reagem a ele é, em sua maioria, fruto do comportamento dele.
Capitu, inclusive, descrita como imponente e de personalidade forte, se não amasse mais Bentinho, não diria várias vezes como o ama e como não desejaria jamais estar fora de seu relacionamento. Capitu era, apenas, uma mulher forte, decidida e magnética, que como muitas foi taxada e acusada de ser algo que não era, pois seus traços levavam a sociedade patriarcal e misógina a percebê-la como ?perigosa?, ?manipuladora?, ?sedutora? etc.
Machado, brilhantemente, nos lembra que as aparências escondem muitas vezes a essência e que a percepção não é necessariamente a verdade. Que o ser humano é contraditório e sentimental, frágil e, muitas vezes, manipulador, nem que seja consigo, que já é suficiente. É essa a essência da obra: verdades são frágeis quebráveis e mutáveis e o homem também.
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?Entre luz e fusco, tudo há de ser breve como esse instante.?
?Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo.?
?Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, olhos de cigana oblíqua e dissimulada. Eu não sabia o que era oblíqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se podiam chamar assim. Capitu deixou-se fitar e examinar. Só me perguntava o que era, se nunca os vira; eu nada achei extraordinário; a cor e a doçura eram minhas conhecidas. A demora da contemplação creio que lhe deu outra ideia do meu intento; imaginou que era um pretexto para mirá-los mais de perto, com os meus olhos longos, constantes, enfiados neles, e a isto atribuo que entrassem a ficar crescidos, crescidos e sombrios, com tal expressão que...
Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exacta e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá ideia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. Quantos minutos gastámos naquele jogo? Só os relógios do céu terão marcado esse tempo infinito e breve. A eternidade tem as suas pêndulas; nem por não acabar nunca deixa de querer saber a duração das felicidades e dos suplícios. Há de dobrar o gozo aos bemaventurados do céu conhecer a soma dos tormentos que já terão padecido no inferno os seus inimigos; assim também a quantidade das delícias que terão gozado no céu os seus desafectos augmentará as dores aos condemnados do inferno. Este outro suplício escapou ao divino Dante; mas eu não estou aqui para emendar poetas. Estou para contar que, ao cabo de um tempo não marcado, agarrei-me definitivamente aos cabelos de Capitou, mas então com as mãos, e disse-lhe, -- para dizer alguma cousa, -- que era capaz de os pentear, se quisesse.?