Iara Caroline 23/04/2024
Dom Casmurro, a temida obra
Sair da recusa a uma devoção faz parte do meu show. Foi assim minha relação com Dom Casmurro; que a poucos importa, mas a literatura segue sendo a nossa relação íntima com o texto. Por duas vezes tentei ler o romance. Na primeira, escolhi a edição errada: era um roteiro de filme. Na segunda, fiquei entediada ainda na primeira conversa de Matacavalos. Na terceira, decidida a conhecer de vez Machado de Assis, saio estonteada pela sua obra.
E vamos primeiro ao próprio: Machado de Assis, inteligente ao extremo. Quando leio obras como essas, e devo dizer: obras clássicas, o interesse causado pela história me remete muito ao próprio escritor. Pode ser que nos enganemos atribuindo muito mais daquilo que surge da gente mesmo, mas não há como ignorar o talento de quem nos causa tanto. Como venho intencionalmente tentando melhorar minha relação crítica e ativa com a literatura e ainda tentando desenvolver a linha trabalhada por essa corrente que tenho adorado, o realismo, passei a obra toda tentando delimitar o que há na escrita de Machado. Claro, não posso ignorar que já havia lido O Alienista, mas não darei delongas sobre. Conheci Machado agora; e sem querer tomar certos clubismos, afinal adorei também a perspicácia de Eça de Queirós, ainda tenho o dever do elogio ao nosso brasileiro. A ironia contida, o trabalho do psicólogico, a intencionalidade em tudo, a costura de detalhes, a interlocução, isso tudo faz-o único da literatura.
Ao que mais interessa, vamos ao narrador mais interessante da história literária: Bento Santiago. Antes de falar propriamente desse, é válido ressaltar que de cara Capitu agradou-me mais. O que será que uma garota perspicaz pode ter que agrade ao olhar de outra mulher? Que seja dissimulada ou oblíqua, Capitu era mesmo mais mulher do que Bentinho era homem. Toda a incerteza e preponderância do garoto ressaltava o estado de espírito dela ao passo que destacava a falta de si próprio. É essa falta de si que torna-se base para todo o romance que Santiago escreve, e que intencionalmente ele disfarça. Mas não saia da minha cabeça, durante o livro inteiro, como a paixão de Bentinho por Capitu só se tornou possível, concreta e urgente quando ele ouviu alguém tomar essa conclusão por ele. Todas as resoluções às quais ele chegava, se olharmos bem, só eram resoluções porque alguém o disse que eram. O traço que mais me interessava é a evidente influência que o protagonista sofria por opiniões alheias. Além de que, todo o aspecto que denunciava essa influência, também denunciava a fraqueza emocional do garoto. Em certo ponto do livro, Bento reflete sobre a possibilidade de Capitu, adulta e infiel, sempre ter existido na Capitu de Matacavalos. Quase fiquei insana pensando que, bom, esse homem morrerá com as próprias convicções. Depois, a impressão que me veio é que é ele quem atesta a leitura de si próprio: pelo contrário, seja quem for Capitu (afinal, conhecemos a Capitu que ele nos faz conhecer), o que sempre existiu fora o Dom Casmurro. Desde novo, tudo o conduzia ao título. Eis o óbvio, como confiar nas palavras e lembranças de um homem amargurado, resoluto de si?
Então, traíra ou não traíra? A singularidade chave que faz a obra de Machado se destacar diante de outras do mesmo cunho. Aqui não se trata unicamente do ato carnal e fatídico, mas sim da pisque, da possibilidade e da distorção. Bem, pode ser que sim, traiu. Mas para mim, é muito certo que não. Por mais que Bento nos dê todos os motivos para crê-lo como digno do correto julgamento, suas atitudes traem suas intenções. Para mim, há dois aspectos importantíssimos nessa narrativa. O primeiro, já o disse mas repito: Bentinho só descobre sua paixão depois que ouve afirmarem ser ela possível. O segundo é o que me faz atestar o seu julgamento não só como errado mas também como mal intencionado: Bento só desconfia da traição de Capitu após ele mesmo experimentar na pele a possibilidade. É apenas depois de trocar olhares com Sancha que Bento descobre ser possível uma traição. Para atestar ainda mais sua dissimulação (sim!), após passar uma noite em claro se corroendo na culpa do fato, o próprio decide perdoar a si mesmo e enterrar o assunto. É então que, corroído pela antiga possessão perdoada como ciúmes, ele descarrega o seu peso de consciência no caráter de Capitu. Se ele pecou em pensamento, é conclusivo que Capitu fizera mais que isso. Bem, Capitu sendo a Capitu que ele construíra desde a infância. Bento sendo quem é, resoluto de suas ideias. O que mais podemos concluir? É claro que há nuances nesse desdobramento. Por não ter de fato pecado em carne, é improvável que seja a transferência de índole o único motivo que alimenta as ideias dele. O que alimenta todas as loucuras que se seguem é justamente a mesma matéria que sempre encaminhou Bento para o apelido de Dom Casmurro. Sem uma própria negativa da mulher, que fora exilada e ignorada, o que mais sobra é a mente vazia. Justamente onde o leitor habita: o emaranhado de conclusões por cima de conclusões e a amargura que se multiplica.
Dom Casmurro é de fato uma obra eterna. Há uma eternidade do que se pode discutir e descobrir dentro dessa arte em formato de palavras. Me dou a licença de perdão pelas vezes que maldisse o autor apenas pela justificativa de ainda não ter o lido. Registro essa resenha apenas para concluir as ideias primeiras da leitura, como gosto de fazer. Porém há sempre muito mais.