Thalya.Amancio 09/11/2020
Um fato histórico sob outros pontos de vistas
Memorial do Convento (1982) do autor português José Saramago, é um romance histórico que constrói sua narrativa em torno de um fato histórico, mas como outros do mesmo gênero literário, decide recontar certo momento e contexto, utilizando de certos artifícios: a perspectiva daqueles envolvidos nesse fato, suas vidas, suas histórias; a história dessas pessoas praticamente esquecidas. Perspectivas essas, ignoradas ou negligenciadas nos documentos reais, pois o foco ficaria/ficou sob os reis, rainhas e nobres.
E nesse caso, a obra se volta para o século XVIII e o relato dos desejos, medos, dificuldades e problemas enfrentados por aqueles e aquelas que diretamente ou indiretamente tiveram suas vidas mudadas, por conta de uma promessa do rei D. João V - a construção do convento de Mafra - quando sua esposa, D. Maria Ana não gerava herdeiros.
"Prometo, pela minha palavra real, que farei construir um convento de franciscanos na vila de Mafra se a rainha me der um filho no prazo de um ano a contar deste dia em que estamos, e todos disseram, Deus ouça vossa majestade (...)" (Página 14).
Muitos trabalhadores, pedreiros, construtores, boiadeiros, mestres de obras e pessoas no geral envolvidas nessa construção, se machucaram gravemente, se separaram de suas famílias ou ainda perderam suas vidas no processo. Só para citar exemplos.
"Vão na viagem José Pequeno e Baltasar, conduzindo cada qual sua junta, e, entre o pessoal peão, só para as forças chamado, vai o de Cheleiros, aquele que lá tem a mulher e os filhos, Francisco Marques é nome dele, e também vai o Manuel Milho, o das ideias que lhe vêm e não sabe donde. Vão outros Josés, e Franciscos, e Manuéis, serão menos Baltasares, e haverá Joões, Álvaros, Antónios e Joaquins, talvez Bartolomeus (...) tudo quanto é nome de homem vai aqui, tudo quanto é vida também, sobretudo se atribulada, principalmente se miserável, já que não podemos falar-lhes das vidas, por tantas serem, ao menos deixemos os nomes escritos, é essa a nossa obrigação, só para isso escrevemos, torná-los imortais, pois aí ficam, se de nós depende (...)" (Página 233).
Baltasar Sete-Sóis e Blimunda estão entre estes que de alguma forma tiveram suas vidas modificadas e olha que já eram diferentes: ele maneta, tendo perdido sua mão esquerda em batalha, ela - perdeu a mãe, bruxa, na fogueira - que enxerga o interior das coisas, dos animais e das pessoas.
Enfatizamos que a narrativa não está inteiramente atrelada ao simples relato da construção, como também se voltará a vida comum desses dois personagens e o amor compartilhados por eles - denominados pelo Padre Bartolomeu, o Voador - Sete-Sóis e Sete-Luas.
Além disso, teremos diálogos filosóficos e existenciais entre diversos personagens, palco para o desenrolar da história. Principalmente conversas entre o casal que são de fazer a leitora ou leitor parar, reler e repensar.
"A vida está antes da morte, Enganas-te, Baltasar, a morte vem antes da vida, morreu quem fomos, nasce quem somos, por isso é que não morremos de vez (...)" (Página 322).
E ainda que alguns personagens surjam rapidamente, se apresentam complexos e profundos ao serem descritos ou observados a partir de seus pensamentos e de suas conversas analisadas pelo narrador, um homem que soube da história e compara com o futuro, revelando seu tempo (em alguns momentos podemos pensar se não seria o próprio escritor).
Assim, acompanharemos Baltasar, Blimunda, o Padre que deseja voar e ajudado pelos dois primeiros, o músico Scarlatti, entre outros personagens cativantes, com vidas que pulsam de realidade e profundidade, tornando difícil se despedir deles.
E se a linguagem de Saramago parece desafiadora de início, ao nos adaptarmos - com sua tentativa de se aproximar da oralidade e de textos antigos, do barroco - imergimos e podemos nos apaixonar ou nos encantar. E posso afirmar, eu me encantei.
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