Vania.Cristina 07/06/2024
O poder das pessoas simples e a magia dos pequenos momentos
Meu primeiro contato com Saramago. Eu já esperava que não fosse ser uma leitura fácil, e, de fato, exigiu esforço. Não porque as palavras sejam difíceis ou a pontuação diferente. É na verdade uma escrita muito descritiva que exige um exercício de concentração frequente do leitor. Volta e meia essa concentração me escapava, e eu tinha que me esforçar mais.
Por outro lado, a história foi extremamente cativante para mim, desde o começo. Eu precisava saber o que ia acontecer a seguir, não existia a possibilidade de cogitar abandonar a leitura. Os personagens foram sendo construídos com calma e eu cada vez mais torcia por eles.
E essa escrita exigente do Saramago, por mais contraditório que possa parecer, foi excitante para mim. Há algo na forma como ele constrói suas frases que é único. Ao mesmo tempo que tudo é meticulosamente pensado, também transmite naturalidade e sinceridade. Há um domínio absoluto da linguagem. O resultado é uma profundidade narrativa que não soa nem um pouco artificial. Achei impressionante vivenciar uma experiência assim.
Quanto à história em si, ela é divertida e mágica, e a narrativa segue numa emoção crescente. Não é linear e seu narrador onisciente é quase um personagem. Pude constatar, mais uma vez, que o realismo mágico me encanta.
Um dia, sem nenhuma explicação ou motivo compreensível, a península Ibérica se separa do continente europeu e começa uma viagem pelo Atlântico. O livro mostra toda a repercussão do fenômeno, tanto para os portugueses e espanhóis quanto para o resto do mundo. Se de um lado temos as descrições das implicações políticas internacionais, o jogo do poder no mundo, de outro temos a repercussão entre as pessoas simples, do povo. A mágica da obra está no que acontece dentro da antiga península, agora uma ilha flutuante.
Em especial, temos a história de um pequeno grupo, diretamente relacionada ao que está acontecendo com a terra. Indivíduos que viveram uma experiência sobrenatural exatamente no mesmo instante que a península se rasgou: Joaquim Sassa, aquele que jogou a pedra pesada mais longe do que seria humanamente possível; José Anaiço, o professor que passou a ser seguido por centenas de pássaros; Pedro Orce, o farmacêutico que conseguia sentir a terra tremer; Joana Carda, a mulher que fez um risco no chão de terra, que não pode ser apagado; Maria Guavaíra, que desfiou uma meia velha azul e gerou um fio mágico, de comprimento inexplicável, que flutua no ar e une as pessoas; e, por último, o cão misterioso, sob o qual treme a terra, e que age como guia e anjo da guarda do grupo.
A história do livro é a história de uma jornada, dentro da ilha que navega pelo oceano. É também a história de êxodos e tragédias. No processo, "pequenos acontecimentos tomam grandes proporções". A ação do indivíduo do povo gera movimentos admiráveis, uma vez que a força está com as pessoas simples. Mas a mágica da história não está nos objetos nem nas pessoas, está no momento vivenciado.
O olhar ibérico sobre o mundo, a terra e a pátria também se destaca. Trata-se de ser português e de ser espanhol. Mais ainda, trata-se de ser de lugares como Andaluzia ou Açores. A península ibérica sente que é tratada como periferia da Europa, que é desvalorizada. Mas há uma riqueza imensa no território, feita de histórias, diversidade, pessoas e paisagens. Assim como há riqueza nessa história, feita de encontros e desencontros. De conexões com os animais e a natureza.
Um capítulo muito especial é o do navegador solitário. Um pequeno conto que norteia a obra maior. (E me remete ao impacto que o conto da cachorra Baleia tem para Vidas Secas).
Com certeza, logo estarei lendo mais Saramago. Quero outras viagens como esta.