brisadeoutono 15/09/2022
Minhas marcações
Certos lugares que me davam prazer tornaram-se odiosos. Passo diante de uma livraria, olho com desgosto as vitrinas, tenho a impressão de que se acham ali pessoas exibindo títulos e preços nos rostos, vendendo-se. É uma espécie de prostituição.
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É verdade que tenho o cigarro e tenho o álcool, mas quando bebo demais ou fumo demais, a minha tristeza cresce. Tristeza e raiva.
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Meu pai cochilava, encostado ao balcão. Na saleta da nossa casa, por detrás da bodega, eu recordava as lições, entorpecido. [...] Havia um grande silêncio, um silêncio incômodo. Às vezes punha-me a tossir, para me convencer de que não tinha ficado surdo. Era como se a gente houvesse deixado a terra. De repente surgiam vozes estranhas. Que eram? Ainda hoje não sei. Vozes que iam crescendo, monótonas, e me causavam medo. Um alarido, um queixume, clamor sempre no mesmo tom. As ruas enchiam-se, a saleta enchia-se ? e eu tinha a impressão de que o brado lastimoso saía das paredes, saía dos móveis. Fechava os ouvidos para não perceber aquilo: as vozes continuavam, cada vez mais fortes. Que seriam? [...] A verdade é que muitas vezes perguntei a mim mesmo se realmente ouvia aquele barulho grande, diferente dos outros barulhos. Perguntei naquele tempo ou perguntei depois? Não sei. Tenho me esforçado por tornar-me criança ? e em consequência misturo coisas atuais a coisas antigas.
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Se Marina voltasse... Por que não? A água lava tudo, as feridas cicatrizam. Não valia a pena pensar no outro. Julião Tavares era um caminho errado. Tantos caminhos errados na vida! Quem sabe lá escolher com segurança os atalhos menos perigosos? A gente vai, vem, faz curvas e zigue-zagues, e dá topadas de arrancar as unhas. A água lava tudo, as feridas mais graves cicatrizam. Lembrava-me de uma queda antiga que me tinha jogado à cama quinze dias. O cavalo se havia empinado, eu caíra nas pedras do Ipanema, rachara a cabeça, esfolara a coxa. Por que era que uma ferida devia ser vergonhosa e outra não?
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Há nas minhas recordações estranhos hiatos. Fixaram-se coisas insignificantes. Depois um esquecimento quase completo. As minhas ações surgem baralhadas e esmorecidas, como se fossem de outra pessoa. Penso nelas com indiferença. Certos atos aparecem inexplicáveis. Até as feições das pessoas e os lugares por onde transitei perdem a nitidez.
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Como certos acontecimentos insignificantes tomam vulto, perturbam a gente! Vamos andando sem nada ver, o mundo é empastado e nevoento. Súbito uma coisa entre mil nos desperta a atenção e nos acompanha. Não sei se com os outros se dá o mesmo. Comigo é assim. Caminho como um cego, não poderia dizer por que me desvio para aqui e para ali. Frequentemente não me desvio ? e são choques que me deixam atordoado: o pau do andaime derruba-me o chapéu, faz-me um calombo na testa; a calçada foge-me dos pés como se se tivesse encolhido de chofre; o automóvel para bruscamente a alguns centímetros de mim, com um barulho de ferragem, um raspar violento de borracha na pedra e um berro do chauffeur. Entro na realidade cheio de vergonha, prometo corrigir-me. ? "Perdão! Perdão!" digo às pessoas que me abalroam porque não me afastei do caminho. As pessoas vão para os seus negócios, nem se voltam, e eu me considero um sujejto mal-educado. Tenho a impressão de que estou cercado de inimigos, e como caminho devagar, noto que outros têm demasiada pressa em pisar-me os pés e bater-me nos calcanhares. Quanto mais me vejo rodeado mais me isolo e entristeço. Quero recolher-me, afastar-me daqueles estranhos que não compreendo, ouvir o Currupaco, ler e escrever. A multidão é hostil e terrível.
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O isolamento em companhia de uma pessoa era mais opressivo que a solidão completa.