Thalya.Amancio 14/10/2020
A angústia da existência em Luís da Silva
"Levantei-me há cerca de trinta dias, mas julgo que ainda não me restabeleci completamente. Das visões que me perseguiam naquelas noites compridas umas sombras permanecem, sombras que se misturam à realidade e me produzem calafrios.
Há criaturas que não suporto. Os vagabundos, por exemplo. Parece-me que eles cresceram muito, e, aproximando-se de mim, não vão gemer peditórios: vão gritar, exigir, tomar-me qualquer coisa.
Certos lugares que me davam prazer tornaram-se odiosos. Passo diante de uma livraria, olho com desgosto as vitrinas, tenho a impressão de que se acham ali pessoas exibindo títulos e preços nos rostos, vendendo-se. É uma espécie de prostituição. Um sujeito chega, atenta, encolhendo os ombros ou estirando o beiço, naqueles desconhecidos que se amontoam por destrás do vidro. Outro larga uma opinião à toa. Basbaques escutam, saem. E os autores, resignados, mostram as letras e os algarismos, oferecendo-se como as mulheres da rua da Lama" (RAMOS, 2013).
Angústia obra publicada em 1936 pelo autor alagoano Graciliano Ramos - pouco antes de sua prisão por questões políticas e acusações de comunismo durante o Governo autoritário de Getúlio Vargas - traz um narrador personagem angustiado e reprimido em diversas áreas de sua vida: Luís da Silva.
Por que reprimido e angustiado?
Luís da Silva pensa muito e não consegue se conectar ao seu presente, já que vive relembrando e tendo memórias de seu passado, quando o nome de sua família possuía status social, ao menos até seu avô, o símbolo de um Brasil rural, coronelista. Um Brasil antes da década de 30. Década esta que sabemos marcante por conta de todas as mudanças sociais, culturais e econômicas as quais o país passava.
E quais são as áreas que Luís da Silva é reprimido?
Ao adentrarmos nos subterrâneos mentais do personagem e na análise que Graciliano realiza, percebemos logo o monólogo que a obra é. Um monólogo interior, sim, cara leitora e caro leitor. Em "Angústia" vemos o romance mais bem acabado da produção da geração de 30, como é chamada. Visualizamos e lemos a mente obsessiva do Luís, sem cortes e censuras. Daí nos assustarmos um pouco com as imagens sucessivas e repetitivas que passam na mente dele: cordas, cobras, objetos fálicos, fazendo clara relação a repressão pessoal, sexual e a sensação de sufocamento que Luís sente durante toda sua vida.
O narrador então abre a possibilidade, através de seu monólogo interior, de apresentar esse ser frustrado, perdido e sem perspectiva de futuro. Muito ao contrário de romances como os de outro escritor da mesma lavra: José Lins do Rego. Embora neste exista uma atmosfera de frustração, como acontece em romances de outras autoras e autoras da década, ainda existe uma certa perspectiva de futuro; bastaria que o passado retornasse. E é esse olhar que muitas críticas e críticos realizam, ao notar o saudosismo e a visão de que o país era melhor com a exploração patriarcal que os senhores de engenho faziam com as pessoas que foram escravizadas, por exemplo. Além desse saudosismo também fica clara a naturalização desses costumes e a ideia de que era "destino de Deus" ou "porque sempre foi assim", típico de pensamentos mais conservadores e tradicionais.
Já em Ramos, sabemos que a situação é problematizada. A realidade é apresentada como complexa, de difícil resolução. Nem o passado e nem o futuro, com a modernização das cidades resolveria os problemas estruturais do Brasil. Não havia e não há resolução rápida e mágica.
O próprio Luís da Silva se percebe como reprimido, oprimido desde pequeno, com seu pai, portanto o seu passado não é retratado de forma saudosa como Rego faz em seus romances:
"[…] Lá estava novamente entrando no passado, torcendo-me como parafuso. —“Rei meu senhor mandou dizer que fossem ao cemitério e trouxessem um osso de defunto.” Quem tinha coragem? Os mais atrevidos chegavam até o muro de seu Honório, no fim da rua. Adiante o lugar era mal-assombrado e ninguém se aventurava por lá. Eu queria gritar e espojar-me na areia como os outros. Mas meu pai estava na esquina, conversando com Teotoinho Sabiá, e não consentia que me aproximasse das crianças, certamente receando que me corrompesse. Sempre brinquei só. Por isso cresci assim besta e mofino" (RAMOS, 2013).
O personagem então não encontra consolo, pois sempre foi impedido de fazer o que desejava. E quando chega a vida adulta, se torna seu próprio inimigo. Ainda mais ao perder a mulher que amava para o homem oposto a ele: Julião Tavares, gordo, falador, burguês, rico. Era tudo que mais detestava da nova ordem social, em que a burguesia, não mais os coronéis, dominava a economia, as cidades e o país.
Marina, a mulher pela qual se apaixona, e nutre certa obsessão e ciúme, é citada por ele como superficial, à procura de um marido com posses, mas o próprio Luís afirma que talvez nunca tenha a compreendido inteiramente e as imagens que têm dela são sempre pedaços, pernas, braços, coxas. Ele enxergava nela a fuga de sua realidade monótona, de mero voyeur, porém não foi além para perceber todas as complexidades de mulher e humana que ela era. E exatamente por essa incapacidade de se conectar com as pessoas que conhece, que também não têm muitos amigos e aqueles que têm são ainda rápidos, sem intimidades.
Temos assim o retrato de um homem incapaz de amar, de ir além da empatia momentânea por seus vizinhos. Pela falta de tato social, se isola e não encontra abrigo nem em sua própria casa, pois lá os ratos comem seus livros e surgem desconfortos quando escuta vizinhos e principalmente, Marina, que mora ao lado.
Aqui abro um parêntese para fazer um paralelo com o livro literário e existencialista de Jean-Paul Sartre: "A Náusea" de 1938. Apenas uma ilustração para fazê-los perceberem como obras, ainda que escritas e publicadas depois, podem ser relacionadas e comparadas.
Em A Náusea observamos esse homem que se surpreende com a sua própria existência, com suas mãos, sua pele etc. e começa a repensar todo o sentido de trabalhar com a pesquisa de figuras históricas já mortas. O grande questionamento no romance do filósofo é: qual o sentido da vida? Sim, bem mais acadêmico e voltado a ideias que o Graciliano não busca com a sua obra, contudo desejamos que vocês vejam as similaridades: Luís da Silva é amargurado por se perceber incapaz ao refletir sobre a realidade parca, contraditória e miserável que vive e vê nos outros, sejam seus vizinhos ou sejam seus amigos, como Moisés, obrigados a trabalhar contra o que acreditam, afinal precisam de dinheiro.
"[…] Muitos crimes depois da revolução de 30. Valeria a pena escrever isto? Impossível, porque eu trabalhava em jornal do governo. Moisés se tinha ausentado: a polícia incomodava os rapazes que liam livros suspeitos e falavam baixo […]" (RAMOS, 2013).
Imagine quantos se negam a pensar em suas misérias, por medo e receio de cair em armadilhas da própria mente? A mente é um labirinto, repleta de memórias, traumas e percepções distorcidas (as lembranças mudam com o tempo. Isso Marcel Proust já escrevia em sua monumental "Em Busca do Tempo Perdido").
E quantos mais se encontram presos de empregos que não gostam, mas precisam. As pessoas logo escolhem não pensar em questões mais abstratas e distantes da concretude de suas vidas - muitas não tiveram e não têm acesso a esse tipo de desenvolvimento de pensamentos -, ao contrário do personagem. E o que podem fazer? E se tivessem acesso a uma educação acolhedora e diversa, ajudaria a se formarem como pessoas mais críticas? E pensar muito as tornaria como Luís? São questionamentos necessários depois dessa leitura.
Por último: o narrador de Angústia cai em sua própria armadilha? Ele cai e não cai, aliás, ele mesmo sabe ser capaz de modificar, focar em cenas e rostos diferentes, especialmente no final, ao ter uma alucinação causada por um certo acontecimento que não irei revelar, entretanto, convido a todas e todos a ler e ter a coragem de ir pelos subterrâneos da psique de Luís da Silva. Quem é leitora ou leitor de Fiódor Dostoiévski pode amar. E se depois de toda a investigação não os motivamos, devemos ter falhado.
Leiam e tirem suas próprias conclusões. A arte permite essa comunhão de opiniões, de interação, de olhares, só não esqueçam de levar em conta o texto.
"[…] A multidão que fervilhava na parede acompanhava José Baía e vinha deitar-se na minha cama. Quitéria, sinha Terta, o cego dos bilhetes, o contínuo da repartição, os cangaceiros e os vagabundos, vinham deitar-se na minha cama. […] Milhares de figurinhas insignificantes. Eu era uma figurinha insignificante e mexia-me com cuidado para não molestar as outras. 16.384. Íamos descansar. Um colchão de paina" (RAMOS, 2013).
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