Carla.Parreira 07/10/2023
Perdas necessárias
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Melhores trechos: ??A estrada do desenvolvimento humano é pavimentada com renuncia?
Quanto mais nova a criança, menor é o espaço de tempo ? uma vez que esteja já ligada à mãe ? em que a ausência é sentida como perda permanente. E embora os cuidados de um substituto conhecido a ajudem a tolerar as separações diárias, só aos três anos, gradualmente, começa a compreender que a mãe ausente está viva e inata em outro lugar qualquer ? e que vai voltar para ela?
A ausência congela o coração, não aumenta o amor? Estudos demonstram que as perdas na primeira infância nos tornam mais sensíveis às perdas que sofreremos mais tarde?
Podemos criar estratégias de defesa contra a dor da separação. A indiferença emotiva é uma dessas defesas. Não podemos perder uma pessoa amada, se não amarmos?
Outra defesa contra a perda pode ser a necessidade compulsiva de tomar conta de outras pessoas. Ao invés de sofrer, ajudamos os que sofrem. E por meio das nossas bondosas ministrações, aliviamos nossa antiga sensação de desamparo e nos identificamos com aqueles de quem cuidamos tão bem. A terceira forma de defesa é nossa autonomia prematura. Proclamamos nossa independência cedo demais. Aprendemos muito cedo a não permitir que nossa sobrevivência dependa da ajuda ou do amor de pessoa alguma. Vestimos a criança desamparada com a armadura rígida do adulto autoconfiante? Todas as nossas experiências de perdas relacionam-se com a Perda Original, a da conexão mãe-filho?
Existe um modelo que divide a mente em três estruturas hipotéticas: o id, a província dos desejos infantis. O superego, nossa consciência, nosso juiz interior. E o ego, a sede da percepção, da memória, da ação, do pensamento, da emoção, da defesa e do autoconhecimento ? o lugar onde vive o ?eu? como imagem de nós mesmos?
A personalidade ?como se fosse? não se apercebe do vazio no seu intimo. Vive sua vida ?como se? fosse um todo. As expressões que usa, as ligações que escolhe, seus valores, suas paixões, seus prazeres, apenas imitam realidades de outras pessoas?
A presença do ódio no amor é comum, mas só reconhecido com relutância?
A repetição é compulsiva na natureza humana. Na verdade, é chamada compulsão repetitiva. Ela nos leva a fazer e repetir o que fizemos antes, tentando restaurar um estado anterior do ser. Ela nos leva a transferir o passado ? nossos desejos antigos, nossas defesas contra esses desejos ? para o presente. Assim, aqueles a quem amamos e o modo que amamos são repetições ? repetições inconscientes ? de experiências anteriores, mesmo quando essa repetição nos causa dor? Repetimos o passado até mesmo quando, conscientemente, tentamos não repeti-lo, por mais inútil que seja a tentativa?
Repetir o que é bom tem sentido, mas é difícil para nós entender a compulsão para repetir o que nos faz sofrer? Fazemos, e repetimos, na esperança de que dessa vez o fim será diferente. Continuamos a repetir o passado ? quando éramos desamparados e conduzidos -, tentando dominar e alterar o que já aconteceu? temos necessidades que podem ser atendidas de outros modos, modos melhores, modos que criam novas experiências. Mas, enquanto não pudermos chorar aquele passado, chorar e deixar que desapareça, estaremos condenados a repeti-lo?
A rivalidade entre irmãos é normal e universal? Dez psicólogos em dez respondem que sim. E, embora possa ser mais intensa nos primogênitos, ou entre duas crianças (ou mais) do mesmo sexo, ou quando as idades são muito próximas, ou ainda quando as famílias são menores, não há duvida de que todos nós somos tocados por esse sentimento de rivalidade, do qual ninguém fica completamente isento. Pois nós todos experimentamos, nos primeiros meses de vida, a ilusão de possuir completamente nossa mãe? Alguns dos padrões que repetimos mais tarde são determinados, não só por nossos pais, mas também por nossos irmãos?
Às vezes, uma crise na família pode aproximar os irmãos. O reconhecimento, em qualquer idade, das nossas dolorosas repetições pode nos libertar para modificar as coisas. Nem sempre precisamos continuar como sempre fomos?
Foi Sigmund Freud que descobriu e descreveu o complexo de Édipo. Afirmou que é universal e inato?
O menino apaixona-se pela mãe. A menina apaixona-se pelo pai. O outro progenitor amado/odiado é um empecilho. Desejo sexual, ciúmes, competitividade e a vontade de dispor do rival aparecem muito antes de a criança ser capaz de dizer o bê-á-bá?
Mais ou menos aos cinco anos, a maioria dos meninos e meninas enfrenta a necessidade de abandonar seus desejos proibidos de Édipo. Que nunca são completamente abandonados. Desejos que, em menor ou maior grau, e às vezes de modo confuso, continuam a determinar sua vida?
Os analistas dizem que as mulheres cujos amantes são, em suma fantasia, pais, podem sofrer inconscientemente de grande sentimento de culpa. Com ?filhos?e ?mães?, esse sentimento talvez seja mais profundo. Na verdade, o homem pode ficar impotente quando sua mulher se parece muito com a mãe; a impotência evita que eles desobedeçam ao tabu do incesto?
O curso desses triângulos sofre nova alteração quando acontece o que os analistas chamam de complexo de Édipo negativo, uma condição emotiva que envolve desejos sexuais pelo progenitor do mesmo sexo, e sentimentos de rivalidade para o progenitor do sexo oposto. Na infância, luta-se com os dois complexos, o positivo e o negativo, e ambos permanecem conosco pelo resto da vida. O que significa que, enquanto para a maioria das pessoas os impulsos heterossexuais são ascendentes, todos nós somos, em certo grau, bissexuais?
Acreditando-nos culpados, podemos acreditar nos nossos poderes de controle da vida. Estamos dizendo que preferimos o sentimento de culpa à aceitação de não estarmos com o controle?
A culpa saudável é adequada ? em quantidade e qualidade ? ao ato. A culpa saudável leva ao remorso, mas não ao ódio por si mesmo. A culpa saudável evita a repetição do ato culposo, sem isolar um vasto campo de nossas paixões ou prazeres. Precisamos reconhecer que fizemos algo moralmente errado. Precisamos conhecer e aceitar nossa culpa?
É verdade que sentimos culpa quando não alcançamos o ego ideal, ou quando ultrapassamos nossas realizações morais. É verdade que a culpa nos faz menos felizes, menos livres?
Embora sejamos adultos, os desejos proibidos e impossíveis da infância continuam a insistir por uma gratificação?
Quando é possível não sentir tanta culpa, tanta vergonha e medo das fantasias, elas podem ser uma fonte de libertação e de alivio. Basta reconhecê-las como essencialmente inofensivas. Reconhecê-las como substitutos daquilo que se precisa necessariamente perder. E usá-las para expressar e aproveitar o que não se pode, ou não se ousa, viver na vida real. Os devaneios conscientes que passam pela mente, quase sempre sem convite, trazem sugestões de um mundo subterrâneo feroz. No sono, porém, quando as restrições são parcialmente abandonadas, caminha-se muito mais perto desse mundo. Sonhando, regredimos no conteúdo e na forma ? liberamos desejos e processos primitivos da mente. Pois os sonhos são construídos com a linguagem vibrante e secreta do inconsciente?
Nem todos os sonhos são tão claros; usam muitos disfarces. Mas Freud diz que todo sonho contém um desejo. Diz que, por mais assustador ou triste que seja, o sonho sempre procura ser realizado. E diz também que está sempre ligado a desejos proibidos e impossíveis da infância?
O senso de realidade permite também uma avaliação relativamente exata de nós mesmos e do mundo exterior. Aceitar a realidade significa aceitar as limitações e as falhas do mundo ? e as nossas. Significa também criar objetivos possíveis, compromissos e substitutos dos nossos desejos infantis?
A vida é, na melhor das hipóteses, ?um sonho sob controle? ? que a realidade é feita de conexões imperfeitas?
Freud, tratando do amor, distingue o amor sensual, que procura a gratificação física, e o amor caracterizado pela ternura. Freud descreve também a superestimação ? ou idealização ? da pessoa amada. Ela também faz parte do amor sexual romântico. Além disso, Freud nos lembra que nem mesmo o relacionamento amoroso mais profundo pode evitar a ambivalência, e nem o casamento mais feliz pode evitar uma certa porção de sentimentos hostis? Levamos para o casamento uma infinidade de expectativas românticas. Às vezes, também visões de míticos êxtases sexuais. E impomos à nossa vida sexual muitas outras expectativas, muitos outros ?devia ser? que o ato quotidiano do amor não consegue realizar?
Mas o contraste entre o casamento que se desejava e o casamento conseguido abrange mais do que o desapontamento romântico e sexual. Pois, mesmo para quem se casa com uma visão realista do que deve ser o casamento ? e da pessoa com quem está se casando -, a condição de casado pode não corresponder a alguma e às vezes a todas as expectativas?
A inimizade aparece porque as expectativas não realizadas tornam-se metáforas para tudo o que falta no casamento? No amor do casamento, procuramos recuperar os amores do passado: o pai ou a mãe inacessível da paixão epidiana?
É claro que ninguém se casa com a intenção consciente de se casar com o papai ? ou com a mamãe. Nossa agenda secreta é um segredo também para nós. Mas esperanças subterrâneas provocam abalos sísmicos?
Os relacionamentos dominador-dominado, ídolo-adorador, desamparado-eficiente, bebê-mamãe, são exemplos de complementaridade neurótica? uma versão mais complicada do casamento complementar é o eu chamamos de identificação projetada, um intercambio sutil e inconsciente, no qual um usa o outro para conter e experimentar algum aspecto da própria personalidade?
As mulheres geralmente escolhem como maridos homens que expressam justamente tudo aquilo que elas precisam negar em si mesmas, ou qualidades que deveriam expressar mas não conseguem?
Os homens procuram a autonomia; as mulheres desejam a intimidade. Essa diferença sexual é responsável pelas tensões conjugais?
Podemos construir o amor adulto. Podemos lutar para amar, usando o melhor das nossas aptidões distorcidas. Podemos, embora com menos freqüência, caminhar sob as estrelas e viajar até a lua, curvando-nos aos limites e às fragilidades do amor. E podemos, com amor e ódio, preservar aquela conexão extremamente imperfeita que chamamos de casamento, onde companheiros amados são também inimigos. Lembrando sempre que não existe amor humano sem ambivalência. E aprendendo que devemos abandonar o sonho de ?amor para sempre: ódio, nunca??
Quando os filhos começam a nascer, surge um novo sonho ? o sonho de protegê-lo contra qualquer perigo. Mas os planos mais perfeitos para a felicidade e o bem-estar dos filhos podem não ser ideais do ponto de vista deles. Mesmo tentando salvá-los dos perigos e das dores da vida, há certos limites que devem ser respeitados. Temos de desistir de muita coisa que queríamos fazer por nossos filhos. E, naturalmente, temos de desistir dos filhos também?
Separações dolorosas da nossa infância podem influenciar o modo como encaramos a separação dos nossos filhos. Revivemos o passado e tentamos reparar o que sentimos?
Existe uma criatura chamada ?mãe boa demais?, a mãe que insistentemente dá demais, a mãe que atrasa o desenvolvimento, não permitindo que o filho tenha nenhuma frustração. Alem disso, essas mães podem ter uma empatia tão imediata com os filhos que estes não sabem se possuem sentimentos próprios? Libertar os filhos consiste em deixar que sejam eles mesmos, e isso significa abandonar o que planejamos para eles. Pois, consciente e inconscientemente, antes mesmo de nascerem, as mães sonham com o tipo de filhos que desejam. Alguns entendidos dizem que a imagem formada pela mãe pode ser tão poderosa, que a ?mãe às vezes precisa abandonar a fantasia daquele bebê diferente que esperava ter, e lamentar a perda desse bebê idealizado, antes de conseguir mobilizar seus recursos para interagir com o bebê que realmente teve?
Apesar das nossas resoluções, surpreendemo-nos às vezes maltratando nossos filhos do mesmo modo com que fomos maltratados. E, sob vários outros disfarces, usando nossas filhas e filhos como personagens de uma peça, reencenamos trechos da nossa infância. Pois, como sabemos, existe uma compulsão para repetir os relacionamentos importantes do passado, o que inclui privações e sofrimentos, ressentimentos recalcados e raivas? Na verdade podemos nos empanturra de informações sobre como criar filhos, e podemos nos esforçar para agir de modo mais amadurecido e atento, e nada disso vai impedir que ? sim -, inevitavelmente, vez ou outra falhamos com nossos filhos. Porque há uma grande distancia entre saber e fazer. Porque pessoas maduras e com conhecimento também são imperfeitas. Ou porque algum acontecimento da nossa vida pode ser tão absorvente e deprimente, que não conseguimos atender às necessidades dos nossos filhos naquele momento?
Freud concluiu que as fantasias e desejos inconscientes (e os conflitos e sentimentos de culpa que provocam) têm um impacto da vida do individuo como se fossem fatos ?reais??
Para construir nossa própria vida, questionamos os mitos familiares e nossos papeis dentro da família ? e, é claro, questionamos as regras rígidas da infância. Pois o ato de sair de casa só se torna uma realidade emocional quando deixamos de ver o mundo com os olhos dos nossos pais?
É mais fácil envelhecer quando não somos entediados nem tediosos, quando temos interesse por pessoas e projetos, quando temos o espírito aberto, flexível e maduro o bastante para nos submeter, quando necessário, às perdas imutáveis. O processo, começado na infância, de amar e deixar partir pode nos preparar para essas perdas finais. Mas privados, pela idade, de alguma coisa que amamos em nós mesmos, podemos descobrir que o envelhecimento exige uma capacidade para aquilo que chamamos ?transcendência do ego??
É verdade que o presente é definitivamente moldado pelo passado. Mas é verdade, também, que as circunstancias de cada estagio de desenvolvimento podem nos fazer reexaminar antigas disposições? Cada um tem a resposta interior para os fatos externos da vida?
Quanto a nossas perdas e ganhos, já vimos que freqüentemente se misturam. Para crescer, temos de renunciar a muita coisa. Pois não se pode amar profundamente alguma coisa sem se tornar vulnerável à perda. E não se pode ser um indivíduo separado, responsável, com conexões, pensante, sem alguma perda, alguma desistência, alguma renúncia?.