mpettrus 01/10/2024
?Macabéa: o Big Bang Estelar de Lispector?
?Que se há de fazer com a verdade de que todo mundo é um pouco triste e um pouco só?
? Ucraniana apenas de nascimento, brasileira por sentimento, identificação e naturalização, Clarice Lispector fez da língua portuguesa instrumento para sua constante busca em captar a vida através da palavra.
? Lançado em outubro de 1977, ?A Hora da Estrela? foi a última publicação feita em vida por Lispector. A essa época, a escritora já detinha grande sucesso, alcançado especialmente após ?A Paixão Segundo G.H.?, considerado por parte significativa da crítica como a sua obra-prima. Esse romance é, portanto, a despedida de uma carreira sólida.
Escrita em primeira pessoa, o narrador-personagem, Rodrigo S.M. responsabiliza-se em relatar os sentimentos e a tecer a história daquela mulher que, mesmo sendo vista rapidamente em uma das ruas do Rio de Janeiro, tocou-lhe de forma profunda.
A novela tem como personagens Macabéa, Glória, Olímpico, Madama Carlota, as quatro Marias, o Sr. Raimundo, o médico, e o próprio Rodrigo S.M.
? Em meio ao discurso do narrador sobre a dificuldade de atingir a simplicidade necessária para tecer sua história, as palavras, guiadas pelo fluxo das ideias, começam a construir Macabéa.
Esta, uma nordestina de 19 anos que, por vontade da sua tia repressora (essa que criara como filha), migra para o Rio de Janeiro.
Fã de Marylin Monroe e Greta Garbo, a personagem escuta frequentemente a Rádio Relógio, além disso, é virgem, adora Coca-Cola, cachorro-quente, é feia - conforme os parâmetros das empresas de cosméticos.
? Macabéa, durante os seus passeios pela grande metrópole, avista um rapaz sendo fotografado e logo se sente atraída por ele. Esse personagem, um migrante vindo da Paraíba, se chama Olímpico de Jesus Moreira Chaves: era operário, tinha o desejo de se tornar um doutor, ser toureiro e seu sorriso era amarelo, pois era repleto de dentes de ouro.
Olímpico de Jesus se tornou o primeiro namorado da personagem, no entanto, sendo possuidor de ganância e de ?esperteza?, ao conhecer Glória (por intermédio da Macabéa), filha de um açougueiro e, então, pertencente à sociedade com um certo prestígio social, abandona a nordestina e opta por manter um relacionamento com a carioca.
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Macabéa perde o namorado, adentra em profunda tristeza, sente seu corpo todo dolorido e decide ir ao médico. Nesse momento é identificado que ela possui início de tuberculose pulmonar.
? Numa tentativa de se redimir e diminuir o remorso pelo fato de namorar Olímpico, Glória aconselha Macabéa ir à cartomante a qual frequentava; a personagem, se deparando com a possibilidade de ter um destino, abraça a ideia.
?A cartomante, madama Carlota, diz a Macabéa que, ao sair daquele local, mudaria completamente a sua vida para melhor: permaneceria no seu emprego, seria muito feliz e encontraria um homem estrangeiro que lhe daria muito amor. Sai então da casa da cartomante, radiante por saber que é digna de felicidade.
? Atravessando a rua desatentamente, é atropelada por uma Mercedes amarela. Com sua cabeça inclinada para a sarjeta, permanece caída e arrodeada de pessoas que ali se agruparam, e dorme profundamente.
? Resenhar obras da Lispector requer uma dose extra da minha atenção porque seus romances são muito densos e eu tenho vontade de falar de muitas coisas. Mas vou ser breve e sucinto.
Um dos pontos mais interessantes dessa história é quando Rodrigo S. M. tenta fazer um paralelo entre o nascimento da vida e Macabéa, o que já nos mostra que há um processo de formação, o surgimento de algo que até então não sabemos do que se trata.
? Eu percebi que no início da narrativa há uma relação do nascimento da protagonista com a própria origem do universo, que pode também ser relacionado à origem das estrelas, uma vez que o título do livro pode ser visto não apenas como algo relacionado ao sonho da protagonista de ser uma estrela de cinema, mas também ao surgimento dos astros, das estrelas.
A história do universo parece refletir-se na história da personagem, como um espelhamento, agora ficcionalizado. O termo ?explosão?, que aparece frequentemente no decorrer do romance, pode estar diretamente relacionado ao evento do Big Bang no que tange seu fragmentarismo e sua multiplicidade.
Esse termo aparece antes mesmo de a narrativa iniciar, ainda na dedicatória da autora, quando Clarice dedica a obra ?a todos esses que em mim atingiram zonas assustadoramente inesperadas, todos esses profetas do presente que a mim me vaticinaram a mim mesmo a ponto de eu nesse instante explodir em: eu?, o que corrobora minha humilde teoria ou sugestão interpretativa desse texto clariciano.
? Outro ponto interessante a observar nessa obra é a projeção de Lispector na protagonista e a sondagem do feminino, ao trazer Macabéa, seguindo caminho diferente daquele escolhido em ?Água Viva? e ?A Paixão Segundo G.H.?, porque as protagonistas dessas obras são letradas, sozinhas, bem-sucedidas profissionalmente, se voltam e mergulham na sua própria solidão e subjetividade, passando a ter devaneios e tomada de consciência.
? O processo contínuo da construção da personagem Macabéa e da sua história traz à tona ? de forma mais manifesta, ao se comparar com as duas protagonistas que citei por já ter lido-as ? o aspecto do engajamento social (característica predominante na literatura brasileira, principalmente no movimento literário regionalista) de uma maneira bem peculiar, atrelando-se com sua identidade literária.
? Rodrigo S.M. deixa claro, em suas descrições - ao situá-la no mundo e naquele espaço de história que será contado -, a classe social da jovem, relatando os olhares de desprezo que a sociedade dirige a ela, mostra a doçura da alagoana mergulhada no ar de rivalidade expirados pelas fábricas que povoam a cidade em ascensão social e industrial.
Macabéa tem uma vida simples e frágil, o ambiente que está inserida é miserável, suas relações sociais são tênues. Ela não é protagonista da sua vida. Encorpada em um ser autômato, possui parcas interações humanas, e essa dificuldade de se relacionar com os demais influencia de forma direta na relação com o seu ?eu? e com as representações simbólicas à sua volta.
? Evidentemente, Lispector revelou os passos dados daqueles sujeitos marginalizados e invisíveis em uma sociedade altamente excludente. Sujeitos subalternos, como a personagem Macabéa, passam por despercebidos por aqueles que não enxergam as minorias.
Mesmo vestindo as roupas de um narrador masculino e burguês, a autora deu seu grito, dando voz a uma imigrante constituindo magistralmente a biografia intelectual da ficcionista Clarice.
Esse romance guarda um dos finais mais emblemático da literatura clariciana, quiçá da literatura nacional.
Vejamos: já nos instantes finais de sua vida, enjoada, Macabéa quase vomitou algo luminoso. É, definitivamente, sua hora de estrela. Brilhou. Será que desde sempre era questão de saber enxergar o brilho?
? Como último ponto, quero comentar que amo a presença de sutilezas na narrativa da autora. A figuração do mínimo em Clarice não deixa de ser carregada de importantes significados, o que interfere muito no meu perfil de leitor que consegue, de fato, acessar o texto clariciano. Em palavras simples, Clarice exige que olhemos as miudezas.
? Bem, skoobers, vou me despedindo por aqui, senão continuarei a falar-lhes e é preciso pôr um ponto. Não um ponto final, porque sobre Clarice, nós já sabemos: continuarão dizendo. Até minha próxima resenha clariciana.
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