Leila 14/10/2024David Machado, autor do maravilhoso Índice Médio de Felicidade, retorna com Deixem Falar as Pedras, uma obra mais densa e introspectiva, que explora temas como memória, senilidade e as imperfeições das relações familiares. Embora não tenha a leveza e a extroversão do trabalho anterior, Deixem Falar as Pedras oferece uma leitura cativante e provocativa.
A trama se desenvolve em torno de Nicolau Manuel, cuja vida foi marcada por um mal-entendido devastador: sua crença de que o alfaiate responsável por seu terno de casamento seria o culpado por sua prisão. O autor constrói de forma brilhante a tensão gerada por essas “conversas atravessadas”, que moldam e envenenam vidas inteiras. Nicolau vive com ódio, carregando uma mágoa não resolvida, o que afeta profundamente seus relacionamentos e escolhas.
O que mais me chamou atenção foi a habilidade de Machado em brincar com a dualidade entre memória e senilidade. O leitor é levado a questionar, em diversos momentos, se o que está sendo narrado são fatos ou ilusões criadas pelas mentes dos personagens idosos, que não são figuras confiáveis. Esse jogo narrativo não apenas instiga a dúvida, mas também reforça a fragilidade da memória humana, em um interessante contraponto com a busca por verdades inatingíveis.
Outro ponto alto do livro, para mim, foi a relação de cumplicidade entre Nicolau e seu neto, Valdemar. Enquanto a relação entre Nicolau e seu filho é marcada por distanciamento e ressentimento, o vínculo entre avô e neto parece ser de maior profundidade e afeto. Valdemar, com sua complexidade emocional e seu diário introspectivo, busca entender e resgatar as memórias do avô, em uma tentativa de dar sentido ao que restou da história de sua família.
Além disso, o livro está inserido no contexto histórico da ditadura de Salazar em Portugal. A prisão de Nicolau não é apenas um incidente pessoal, mas está diretamente ligada ao regime repressivo da época, marcado por perseguições e censura. O impacto da ditadura salazarista sobre os personagens é profundo, refletindo-se tanto nas suas experiências de vida quanto na maneira como lidam com o passado. Machado tece essa crítica ao regime de forma eficaz, trazendo à tona as cicatrizes deixadas por esse período na sociedade portuguesa.
A obra também nos apresenta famílias imperfeitas, revelando as falhas e tensões tanto no relacionamento entre Nicolau e seu filho quanto na estrutura familiar de Valdemar. A mãe de Valdemar, uma figura ausente e ocupada, é retratada quase como um ser etéreo, distante em momentos importantes da vida em comum, o que adiciona mais camadas de reflexão sobre os laços familiares.
Enfim, achei mais um livraço do autor português e pena não haver mais obras dele por aqui. Se encontrarem qualquer um dos dois por aí, vá sem medo de errar. #ficaadica