lucasfrk 10/11/2022
As Vinhas da Ira ? Resenha
?Nos olhos dos homens reflete-se o fracasso. Nos olhos dos esfaimados cresce a ira. Na alma do povo, as vinhas da ira diluem-se e espraiam-se com ímpeto, amadurecem com ímpeto para a vindima.? (p. 457)
Há em John Steinbeck, mais exatamente em suas personagens, uma certa tendência à revolta. Albert Camus nos dizia: ?se queres filosofar, escreva romances?, pois, assim como a arte, ela também cria personas. Ambas são atividades criadoras, que atiçam a sanha criativa do homem na construção de sua sensibilidade subjetiva. Para o filósofo franco-argelino, a beleza da revolta mora no ato de transformar a angústia individual numa luta conjunta (uma luta coletiva em nome de valores comuns). Incorporando essa visão subversiva, Steinbeck parece ter em mente que, em determinadas circunstâncias, a violência é o único meio para atingir seus fins, lutando pela ? e para a ? justiça não importa de quem seja.
Nascido em 1902, de uma professora e um tesoureiro, em Salinas Valley, Steinbeck presenciava a vida de trabalhadores nos centros agrícolas, tornando este espaço o palco principal de suas obras. No início da década de 1960, fora laureado com o Prêmio Nobel e com o Pulitzer. O autor também teve dezessete de suas obras adaptadas para Hollywood ? sendo até mesmo indicado ao Oscar de melhor roteiro original por ?Um Barco e Nove Destinos? (Lifeboat, 1944), de Alfred Hitchcock. Morreu em 1968, em New York, aos 66 anos, desiludido com críticas que recebera ao ganhar o Nobel quatro anos antes (?antiquado? era a principal), para postumamente ser amplamente considerado como um dos maiores romancistas do século XX.
O realismo poético de Steinbeck alia-se à tradição transcendentalista, pensando na problemática social da nação estadunidense aliada a uma percepção do mundo bastante romântica ? no cinema, ?A Felicidade Não Se Compra? (It's a Wonderful Wife, 1946), assim como o cinema de Frank Capra, em geral, me parece incorporar alguns desses pressupostos. ?Ratos e Homens? (1937), um de seus mais belos textos, traz ambientes e personagens cativantes num relato quase que jornalístico. Steinbeck centra suas histórias num limbo econômico, dado sua origem social precária, captando a luta pela dignidade humana e a dificuldade das relações de afeto frente à crueldade de um mundo que cada vez mais preza pelo individualismo competitivo. No entanto, sua preocupação social tem inspirações bíblicas, explicitando peculiaridades de linguagem e passagens formidáveis que presentificam a dimensão dramática da obra.
Publicado dois anos após Ratos e Homens, ?As Vinhas da Ira? (1939) segue a representação do confronto entre indivíduo e sociedade, através da epopeia dos Joad, a pobre família de rendeiros expulsos da sua quinta pela seca dos campos de algodão de Oklahoma, pelas mudanças na atividade agrícola e pela execução de dívidas pelos grandes bancos ? forçando o abandono pelos rendeiros do seu modo de vida ?, para tentar sobreviver nas plantações de frutas em Salinas, na Califórnia. Da mesma maneira que denuncia os dramas e flagelos de um país debilitado pela Grande Depressão dos anos ?30, Steinbeck defende o conceito de que o indivíduo isolado nada vale, e a sobrevivência só é possível quando há solidariedade entre os semelhantes.
O protagonista, Tom Joad, retorna à casa em liberdade condicional (pois ficara quatro anos preso por ter matado um homem numa briga). Os Joad haviam sido expulsados de suas terras, assim como a maioria dos agricultores endividados de Oklahoma. A família, com o pouco dinheiro que lhe resta, compra uma caminhonete velha a fim de seguir à Califórnia, atraídos pelo anúncios de oferta de emprego nos campos de laranjas. A morte do avô na logo no início do trajeto torna-se prenúncio das desgraças que enfrentarão. Eles descobrem que há pouco trabalho para muita gente ? amontoada nos acampamentos improvisados ? e os salários são bastante baixos. O autor mostra, assim, a intervenção estatal e a organização dos trabalhadores como única alternativa à exploração.
As Vinhas da Ira é frequentemente lido em aulas de literatura dos ensinos secundário e universitário norte-americanos devido ao seu contexto histórico e ao legado perdurável. Há ainda, todavia, um certo preconceito decorrente da abordagem social do romance, muito ridicularizado pela simplicidade de sua linguagem (simplicidade constantemente confundida com ?simplismo?, ou ?reducionismo?). Sua versão para o cinema (1940), dirigida pelo mestre John Ford e estrelada por Henry Fonda, também faturou dois Oscar.
Steinbeck retrata a situação do homem moderno diante de dificuldades concernentes à pobreza e à privação do sujeito em um universo feroz, frenético e fugaz protagonizado pelas vítimas da competição e tratadas como párias sociais. O autor espelha, na vida e na arte, paradoxos provocados pela tensão entre instinto e mente, natureza e história, a civilização e seus descontentes. Em As Vinhas da Ira, Steinbeck alça aqueles homens e situações comuns a uma dimensão épica de imortalidade, trazendo a sua narrativa uma atemporalidade especial.
Na nação da ?liberdade e da democracia?, o polêmico livro causara um certo alvoroço, em que a histeria o fez virar cinzas em diversas cidades. Contudo, seu retrato fiel, seco e concreto da crise no campo após a Depressão não só lhe rendeu prêmios como adquiriu estatuto de clássico (num dos trechos mais marcantes da obra, Steinbeck descreve a cena de uma tartaruga atravessando uma estrada, como uma metáfora para a luta diária dos trabalhadores). A representação apaixonada de Steinbeck da situação dos pobres levou muitos de seus contemporâneos atacaram sua visão social e política (difamando-o como propagandista e socialista tanto da esquerda como da direita do esquema político). A saga da família Joad no apocalíptico cenário rural de Oklahoma e Califórnia dos anos ?30 não só é um retrato fiel e agreste da realidade, mas também torna-se ? e a cada dia mais da decorrência da bolha de 2008 ? um retrato crítico de uma época, marcado pela desilusão acerca do percurso humano na Terra.
Steinbeck põe em cheque o sonho americano, estilhaçado pela realidade de injustiças, manipulações do trabalho e explorações feitas por grandes corporações multinacionais. Além disso, Steinbeck também fora o primeiro escritor norte-americano a ter uma preocupação séria com a ecologia. Suas personagens sempre buscam uma integração equilibrada para com a natureza, a defendendo a todo custo.
Steinbeck evoca um romantismo primitivo que clama por piedade ao sofrimento humano alheio, causando um sentimento de revolta ao leitor devido ao estado de coisas de uma população condenada ao ostracismo, na medida em que expõe a extremada situação de vulnerabilidade das personagens. Frequentemente, ao longo de todo o percurso da narrativa ? culminando no fascinante arremate do livro ?, Steinbeck captura uma mescla de fatalismo com esperança.
A produção literária de Steinbeck dos anos ?30 ? sobretudo Ratos e Homens e As Vinhas da Ira ? ligava-se a um longo processo histórico culminado na Crise de ?29. Assim, suas obras do período evocam as sombras desse conjunto de transformações sociais, econômicas e políticas. Sendo herdeiro das classes rurais mais baixas, Steinbeck nutriu em sua esplêndida obra valores e experiência subjetivas proporcionados pelo modo de vida cultivado por seu grupo social desde o século XIX, de tal maneira que o autor construiu uma perspectiva histórica que buscou interpretar, denunciar e retratar os problemas da nação, cujos percalços eram, em grande parte, ao gradativo aumento da hegemonia do capitalismo monopolista e suas diversas ramificações.
Diante dessa ?experiência do absurdo?, a revolta de Casy, o pregador ? até então alguém sem propósito ?, tornara-se um motivo, uma causa motriz, criadora de um sentido até então ausente. No seu derradeiro fim, Tom Joad, ao ver o amigo numa situação absurda, acerca-se da revolta (única alternativa frente às forças de poder autoritárias e arbitrárias). Segundo Camus, a natureza humana não aceita a condição de rebaixamento. No romance-denúncia de Steinbeck, devido às excelentes construções dramáticas e psicológicas dadas a essas personagens ? tendo uma magistral capacidade de tocar em feridas sociais que até hoje desconfortam aqueles que preferem manter as atuais estruturas de dominação frente os mais necessitados ?, nós, leitores, nos compadecemos de sua luta; não numa posição superior, distanciada, em nossas torres de marfim, mas sim como se estivéssemos dentro da diegese da narrativa, presenciando as dificuldades e o absurdo da vida (a revolta quando é coletiva, e não individual, torna-se libertadora).
Em última instância, o autor, desde o início, com sua linguagem seca e sua escrita crua, deixa claro suas pretensões narrativas, trabalhando o romantismo com um choque de realidade provido pelo arremate desta esplêndida obra. Steinbeck projeta um deslocamento não só espaço-temporal, físico e geográfico, mas também um movimento sócio-histórico, refletido em sua própria passagem pessoal. Esse processo transmite um amargor, um azedume que advêm de um resgate a um passado nostágico de prosperidade (que incorpora o romantismo). Desse modo, portanto, o estatuto de clássico de As Vinhas da Ira está dado em grande medida pela sua sensível agudeza, de uma percepção essencialmente humanista em relação a todo um processo histórico. Steinbeck, em um estado de revolta e de afirmação de si próprio, não parece preocupar-se tanto para com o estilo ? traduzindo-se numa linguagem bastante simples, como já apontado no presente texto ?, mas sim à denúncia da natureza injusta das alterações sociais e de seus efeitos avassaladores, enfrentando o absurdo de frente e escancarando a decadência de tais mecanismo, resultando numa pujança humanista imprescindível.