Lucas Rabêlo 20/03/2023
Um protesto sexual e industrial
D.H. Lawrence declarou em um ensaio temático à obra a honestidade em produzir um romance sincero e salutar, que contém palavras que escandalizam num primeiro momento, mas depois amainam qualquer sensação de perplexo. Um registro necessário aos seus dias passados – hoje, seu sexo soa tímido. Completa ainda em sua justificativa que respiram aliviados àqueles que, num intelecto mínimo, enxergam a negociata que o autor arma entrelaçando uma simples história de amor, com personagens em manutenção de suas fisiologias naturais, à atração mútua convergida na transa natural.
A trama, se lida numa perspectiva rápida, parece apadrinhar um amor proibido, o de Constance “Connie” Chatterley e o guarda-caça, Oliver Mellors, da propriedade de Wragby, herdada ao seu marido, Clifford Chatterley, ferido em combate bélico e paralisado das pernas para baixo, palco das confluências dramáticas de muitas passagens. A casa, assim como a natureza do entorno – o bosque, as flores, a chuva -, são testemunhas e termômetros para os humores das figuras centrais.
Sentenciado à vulgaridade e ao adultério, na primeira vista, tem uma franca discussão posterior encoberta, não por muito, pois, sim, adianto, é um amor lindo, mas Lawrence é o tal onipresente e vai além, despeja declarações crítica às classes sociais e à sexualidade, são sobre estas prerrogativas que congrega a força de um romance que nasceu moderno, consciente em atingir o coletivo de suas mulheres.
Escrito às cinzas da era eduardiana, período de meticulosa rigidez e frigidez moralista acerca do que era consumido e difundido, o autor dribla os ares tradicionais na intenção provocativa de exercer sua função costumeira, brincar de transgressor. Mania que o acompanhava desde o início da produção literária. Sem prever que seria este seu último livro em vida, patenteia-o como a tua obra-prima: o escandaloso texto surtiu efeito suficiente para interceder na transição de períodos nas comunidades inglesas. Suas primeiras cópias banidas atualmente são de uma obscenidade inaudita, naturalizada.
Connie, ao identificar no marido o verbete machista e da imaculada pose nobre perante seus subalternos, os mineiros da região, negócio ancestral, é inflada na ânsia de viver, viver em vida, ainda. Se a introdução do relato é tolerante às cláusulas dos clássicos, rodeando no próprio rabo, denotando a rotina patrona dos Chatterleys, da entonação conformista de Connie num começo, seu miolo até o fim incita de uma só vez fôlego para o cerne da questão autoral, reflexão autônoma do sistema vivenciado – a constatar, dissimulado.
Liberta das contenções da casa, conflagram-se os melhores diálogos do livro dos encontros com Mellors, humanos em toda sua forma ao falarem e fazerem amor, ao foderem, ao dissecarem o mundo e suas diferenças, pessoais e usuais. O sexo, por sinal, é pouco gráfico (as denúncias foram pura bobagem intolerante). Ambos os protagonistas advêm de uma trajetória pregressa de repressões, Connie ao se casar sem demasiado fogo e cansada deste, e Mellors em suas trágicas histórias românticas. Sua junção explode em fagulhas de liberdade. Estão fadados a lutar por seus corações.
A narrativa do relacionamento, mesmo com ardor, é típica. Os louros vão para a sobriedade de cada partícula a mais que Lawrence retratou, da luta de classes de proletários numa Europa pós-Guerra, não mais anestesiada da realidade bélica a que foram conjugados, dispostos a reivindicar; e da sensualidade modernista em propagar paixão e tesão, reagindo em favor de um protesto feminino, nunca condenando Connie, mas abençoando seu gênero ao confrontarem seus respectivos prazeres e aos compartilharem com quem quisessem.
Articulado em dissuadir a massa cinzenta de uma aristocrata, Lawrence, com carinho, pajeia o par como uma esperança, liberta uma mulher de um homem alheio ao seu relacionamento para intercedê-la ao caminho oposto do pessimismo, sentenciando-os ao hino da carne e da ternura.