Duanne 15/05/2009
Imprecisão
Não sei em literatura existem termos equivalentes, mas em cinema, podemos falar de campo e contracampo, sendo "campo" aquilo que podemos ver na tela e "contracampo" aquilo que acontece na história e que sabemos (imaginamos até) que está acontecendo, mas de fato não vemos. Quando alguém na tela acena para um outro alguém e esse não é mostrado, mas presumivelmente responde, isto aconteceu no contracampo.
Pois bem. Fogo Pálido, de Nabokov, tem uma narrativa principal e uma série de narrativas que se pode dizer que acontecem no contracampo. As imprecisões da história do narrador e as visões contrastantes dos outros personagens que nunca tem voz, além da nossa própria consciência do absurdo de algumas passagens forma todo o charme do livro.
Esta narrativa principal é a de um editor de um livro de poesias de um poeta assassinado. Mas a cada nota que faz ao poema, o editor se distancia mais do que poderiam ser as intenções do autor — na visão dele, expondo o que seriam as verdadeiras intenções do autor. Enquanto o poeta faz um poema autobiográfico, cujo valor me parece estar na descrição, sem tentativa de beleza artística, do cotidiano, o editor vê em tudo isso uma narração cifrada a respeito de um país inóspito, Zembla, e as aventuras de um rei homossexual, tremendamente avesso a mulheres, que é deposto e foge. E mais: enxerga em algumas palavras a previsão de que o assassino do poeta se aproximava, não para matá-lo, mas para matar o rei.
É, então, crítica literária absurda + história de aventura + história de mistério + poesia, digamos, naturalista. Isso é o que vemos; mas sabemos muito pouco e só supomos qual foi a reação (indignada) a respeito da edição feita para o poema, da real relação do poeta e do editor, das condições psicológicas do próprio editor. Com parcos recursos e poucas pistas, vamos construindo a verdade, a personalidade de um e de outro.
E, ah! Aí talvez estejamos fazendo o mesmo que aquele editor, compondo o quadro que mais nos agrada a partir de referências arbitrárias. Não foi Wilde que descreveu a crítica como falar de si? Assim: o método para uma resenha seria: 1 - ponha o livro a sua frente; 2 - imagine o que quer que esse livro possa te interessar; 3 - passa a falar de você.
No contracampo, Nabokov nos revela, lá também estamos nós, afinal.