Naiara 15/01/2013
Lugares para a História
O livro intitulado “Lugares para a História”, de autoria de Arlette Farge, trás até nós uma discussão recente sobre o historiador e o que está diretamente relacionado à pesquisa. O historiador, como Foucault comentava, trabalha com as descontinuidades e estas “atravessam” constantemente os temas. Dessa forma, a cada capítulo uma questão importante a ser observada pelo historiador é apresentada: Do sofrimento, Da violência, Da guerra, Da fala, Do acontecimento, Da opinião, Da diferença dos sexos e Dos historiadores Bouvard e Pécuchet. Arlette Farge, nascida em 1941 em Charleville, é uma historiadora dedicada a pesquisas sobre a relações de gênero, comunidades podres, escrita da História, entre outros, as quais podem ser sentidas ao longo do livro na forma como vai tratando e exemplificando o assunto.
A autora começa falando sobre o sofrimento, dizendo logo ser esse um tema difícil para o historiador, pois enquanto tal ele não é estudado, mas usado como sinalizador para a observação dos eventos – ditos geralmente como descontinuidades – que atrairão a nossa atenção, como revoluções, guerras, acidentes, dentre outros. O sofrimento em si parece pouco fazer parte da História até pelo menos o momento da História do Tempo Presente. O sofrimento, esse “resíduo de formas imutáveis” não deve ser esquecido. Ao contrário, a autora defende que esses relatos de vida deveriam se mesclar àqueles da disciplina histórica. As emoções são então, observadas a partir de suas falas, gestos e ações pelo historiador que permitirá a inserção delas entre os atores sociais.
Da mesma forma, podemos perceber com a violência em que guerras, conflitos, discórdias, são assim demarcados pelos sujeitos desses acontecimentos. A violência trás a desordem para a comunidade ao mesmo tempo que a torna resistente e a une pela luta. O historiador irá, portanto, analisar quais as racionalidades surgidas da violência e não se existe razão ou não. Em seguida Farge questiona: “onde encontrar essas formas de racionalidade?” ao passo que responde em vários lugares, nos discursos, nas falas singulares, nas práticas sociais ou por baixo dos discursos, pois a história se faz identificando que os acontecimentos são únicos e singulares. Observando, a partir de Foucault os jogos e relações de poder, a autora nos faz perceber que a violência além de ser uma consequência social pode também ser o principal objeto de uma política. Por isso afirma: “é preciso compreender as formas de racionalidade que fazem jorrar a violência”.
A respeito da guerra, dita “mortífera mas inevitável”, a autora questiona por que é inevitável ou mesmo por que a consideramos como algo normal. As guerras, as batalhas, se relacionam com os capítulos anteriores, pois elas provocam medo, sofrimento, morte, violência. Elas vêm para desmultiplicar os números, parar mudar o rumo das pessoas, ao mesmo tempo que as reúnem em prol de uma ideia de luta pela paz, “a guerra jamais aparece como uma fatalidade, e sim como um princípio declarado de solução de conflitos entre príncipes” (p. 51). Aqui também novas abordagens para o trabalho sobre a guerra são pensadas como, por exemplo, por que não analisar sobre as emoções ou motivações que levaram as pessoas a estarem na guerra, ou por que não levantar novas questões sobre convicções preestabelecidas? Como seria possível trabalhar diante de algo que seria uma “surpresa”? De qualquer forma, para fechar a discussão acerca da guerra, a autora finaliza com a seguinte frase: “a guerra, de fato, é uma “loucura”, um objeto que se inventa”.
Com relação a fala, percebemos a preocupação da autora em afirmar que dentro dos relatos históricos se encontram embutidas as falas, a oralidade, pois muitos dos documentos que o historiador se detém vieram pela tradição oral. “É preciso dar lugar a outras formas de história” e nesse percurso as falas poderão ser utilizadas como fontes de pesquisa do historiador que também se auxiliará de outros tipo de documentos. Na verdade, a abertura para a leitura dos documentos provindos da oralidade permitem ao historiador levantar novas indagações que devem, contudo, ser cautelosas para evitar que acabem caindo da singularidade, na individualidade. As falas aparecem nos trabalhos históricos não para ilustrar, mas para provocar problemas, incitando na busca por outras fontes que se relacione com o descontínuo. A história deve, então, criar espaços para que seus relatos, em parceria com a literatura, possam desprender novas questões, permitam a observação da dor, do medo, dos sentimentos (coisas ditas como do campo da literatura). Pois a história e a literatura são como dois gêneros que necessitam um do outros.
Um pedaço de tempo é como a autora entende inicialmente o acontecimento. Então, desde o início o acontecimento seria uma desordem, algo heterogêneo, organizado pelas falas, afirmações, comentários. “O fato e a fala sobre o fato são dois materiais diferentes que exigem que reflitamos sobre sua inclusão no relato”. O historiador ama e procura com frequência o acontecimento assim como procura relatos que comprovem ou legitimem seu discurso. Ao mesmo tempo, quando o historiador escolhe um determinado acontecimento outros são esquecidos, mas a este acontecimento escolhido ele dará um espaço notável, singular pela maneira como será construído, interrogado e analisado. O acontecimento às vezes pode ser auxiliado pelos testemunhos de vida, a memória daqueles que viveram o acontecimento, e isso é usado principalmente pelos historiadores do tempo presente, mas devemos ter cuidado ao utilizá-las para que não pareça uma anedota ou uma verdade certa. A imposição desses limites cabe ao historiador.
A opinião é um emaranhado de memórias, saberes e informações, fabricadas pelas falas, pelos ritos e mesmo pelo silêncio. As emoções também podem ser julgadas, pois o pensamento também pode tomar ou não um caminho falso. Observando como exemplo a realeza francesa do século XVIII analisa também a questão do belo, pois este também deve estar nas mão de quem detém a moral e o poder. Dessa forma, adjetivos como belo e feio ou bem e mal qualificam os acontecimentos.
Em Da diferença dos sexos a autora escolhe alguns livros, referência no campo dos estudos de gênero e principalmente sobre a História da Mulher, para fazer análises. Levantando considerações sobre a ausência de livros até ser lançada a primeira proposta com a História da Mulher no Ocidente, ela trilha um percurso que nos leva a ver que homens e mulheres foram e são tratados de formas diferentes, que existe discussões sobre igualdade entre os sexos, mas as diferenças ainda são muito observadas. Como exemplo, ela cita o livro de Catherine Weinberg-Thomas falando sobre as satis da Índia. Para ela, a linguagem, as perguntas e hipóteses levantadas pela autora do livro deixa entender essa diferenciação entre os sexos como algo ainda muito comum, pois ela própria a faz.
Para fechar a discussão sobre os Lugares para a História, a autora nos depara com personagens do livro de Flaubert. Personagens esses que buscam um significado para a historia nas suas vidas, colecionando artefatos, lendo livros, ou, posteriormente, escrevendo seus próprios livros. A cada nova etapa, Bouvard e Pécuchet se encantam inicialmente, se debruçam com tamanha intensidade sobre o que desejam e ao final percebem ser um tanto lacunar aquela maneira de querer conhecer a história, pois eles acreditavam, ou queriam, conhecer tudo de história. Mesmo seu momento de escrita se mostrou desconexo, com vários trechos dispersos no papel. Então eles percebem que a história não pode existir, ela pode ser fábula, ficção, mas não um relato do todo e do tudo.
Diante desse breve resumo dos capítulos para orientar nossas análises, podemos nos deter a fazer algumas considerações. A autora, Arlette Farge, propõe em seu livro uma forma dinâmica de narrativa que perpassa os diversos “lugares para a História”, com quem a História se auxilia, buscando apoio em eventos diversos, tempos diversos, temas diversos, autores diversos. Em um capítulo ela dialoga com a monarquia francesa do século XVIII, as emoções e o seu conceito de beleza e no outro ela se volta para a Índia e as práticas ritualísticas das viúvas logo após a morte do marido. Esse caminho traçado por ela se faz possível por seu interesse maior ser a História em si, as novas abordagens, métodos e práticas dos historiadores, as novas problemáticas que surgem, as novas fontes – os relatos orais, os documentos que fazem sentir a oralidade em seu cerne.