Leonardo 18/05/2013
Pra quem tem amor pela literatura
Ray Bradbury foi um escritor norte-americano nascido em 1920 e falecido em junho do ano passado. Escreveu muito ao longo de toda a sua vida. É autor de diversos romances e uma grande quantidade de contos. Tem um lugar cativo na minha estante e no meu coração por causa de um livro, justamente a sua obra mais famosa: Fahrenheit 451, sobre o qual escrevi aqui. Se ele só tivesse escrito esse livro, certamente ainda seria cultuado em todo o mundo pela homenagem impressionante que ele presta à literatura. Acontece que ele não escreveu só isso, como deixei claro no começo. Desde os doze anos ele escrevia mil a dois mil caracteres todos os dias. Produziu um sem número de contos, praticou a escrita como um escultor trabalha o mármore. Errando, aperfeiçoando, “desperdiçando” caríssimas pedras de mármore de Carrara até conseguir desvelar de um bloco de pedra uma escultura que possa ser chamada de arte e que provoque um involuntário “Ohhhh!!!” num passante desavisado.
Ele conta isso em O Zen e a Arte da Escrita, uma coleção de artigos seus sobre o ato de escrever, sobre onde encontrar inspiração, como aperfeiçoar a técnica e, principalmente, como deixar espaço para que a criatividade apareça e as boas histórias possam ser escritas.
São nove artigos em que Bradbury dá conselhos, relata suas próprias experiências e revela seu grande amor pela literatura. Destaco o primeiro, A Alegria da Escrita, Bêbado e no comando de uma bicicleta, Investindo moedas, em que ele fala dos dez centavos que ele pagava por meia hora numa máquina de escrever da biblioteca para escrever Fahrenheit 451, O Zen e a Arte da Escrita… Na verdade, não dá para indicar alguns. Todos os artigos são ótimos, imperdíveis.
Logo no começo, em A Alegria da Escrita, Ray Bradbury nos ensina:
“É preciso se embriagar da escrita para que a realidade não o destrua. Escrever oferece exatamente as receitas adequadas de verdade, vida, realidade que você é capaz de comer, beber e digerir sem sofrer de hiperventilação ou agonizar como um peixe fora da água em sua cama.”
Então o escritor afirma que se você pretende escrever, então pratique, pratique muito. Escreva todos os dias. Regularidade é essencial. Quantidade é essencial para aperfeiçoar a técnica, para que você não pare nos mecanismos da escrita, no domínio da língua e possa transportar a história que habita a sua mente sem restrições para seu caderno. Ele diz então:
“Nas minhas jornadas, aprendi que fico ansioso se passo um dia sem escrever. Dois dias, começo a tremer. Três, suspeito de demência. Quatro, sou um porco chafurdando na lama. Uma hora de escrita é como um tônico. Fico em pé, correndo em círculos e gritando por um par de sapatos limpos.”
No artigo seguinte, outra valiosa lição, que merece uma reprodução um pouco mais completa:
“Corra, pare. Eis a lição dos lagartos. Observe a maioria das criaturas e você verá o mesmo. corra, pule, congele. Com a habilidade de se mover como um cílio, estalar como um chicote, desaparecer como o vapor, aqui neste instante, lá no outro, a vida cobre a terra. E, quando a vida não está correndo para escapar, está fingindo de estátua para fazer o mesmo. veja o beija-flor aqui, não mais aqui. Como o pensamento que surge e desaparece, como o vapor do verão, a limpeza de uma garganta cósmica, a queda de uma folha. E, onde estavam – um suspiro.
O que os escritores podem aprender com lagartos e pássaros? Rapidez, certamente. Quanto mais rápido você se expressar, quanto mais prontamente escrever, mais honesto será. Na hesitação está o pensamento. Na postergação surge o esforço por um estilo, em vez do mergulho na verdade, que é o único estilo que vale uma queda mortal ou uma caçada ao tigre.
Entre fugas e voos, o que há? Seja um camaleão, mimetize a paisagem. Seja uma pedra, deite na poeira, permaneça na água da chuva da calha inundada há muito tempo do lado de fora da janela de seus avós. Seja um vinho de dente-de-leão na garrafa de ketchup tampada e exibindo uma inscrição a tinta: “Manhã de junho, primeiro dia de verão, 1923. Verão de 1926, fogos de artifício. 1927: último dia de verão. Último dos dentes-de-leão. 1º de outubro.” E, disso tudo, extraia o seu primeiro sucesso como escritor, uma história de vinte dólares, no Weird Tales”.
Há outras lições dadas pelo mestre. Uma delas é fundamental para quem, como eu, persegue a “literatura de alto nível”. Não se envergonhe de gostar de Buck Rogers. Não se envergonhe de gostar de ler o Pato Donald, eu diria para meu irmão. Não se envergonhe de gostar de A Guerra dos Tronos ou de O Nome do Vento ou de Neil Gaiman ou de quem quer que seja. Corrigindo: há alguns casos em que você deve se envergonhar sim, mas nem vou me deter aqui.
Outra lição, e essa eu não tenho seguido:
“Leia poesia todos os dias de sua vida. Poesia é bom porque exercita músculos que não são utilizados sempre. Poesia expande os sentidos e os mantém em forma. Ela mantém você consciente de seu nariz, olho, ouvido, língua, mão. E, acima de tudo, a poesia é uma metáfora compacta ou um sorriso. (…) Que poesia? Qualquer uma que arrepie os pelos dos seus braços. Não se esforce demais; vá com calma. Ao longo dos anos, você vai compreender, virar-se bem e ultrapassar T. S. Eliot no caminho para novas pastagens. Você não consegue compreender Dylan Thomas? Mas seus gânglios, sua sabedoria secreta e toda a sua criança ainda por nascer o compreendem. Leia-o, assim como quem lê um cavalo com os olhos, liberte-se e cavalgue por um campo verdejante infinito no dia de muito vento.”
Talvez a lição mais insistente de Ray Bradbury seja uma técnica pessoal que ele desenvolveu e que o ajudou a escrever bem: fazer listas de palavras por meio de um processo semelhante a um brainstorm, a uma tempestade de ideias. Pensar em um objeto e a partir daquele objeto, vasculhar sua memória e buscar mais referências. Outros objetos, sentimentos, pessoas. Ele conta que sempre fez listas. Muitos dos seus contos e mesmo dos seus romances nasceram assim.
Mais uma lição, essa na jugular de quem escreve:
“Eis aqui a minha teoria. Nós escritores estamos aí para o seguinte: construímos tensões sobre o riso, então dê permissão e o riso vem. Construímos tensões sobre a dor e, por fim, diga, chore e torça para ver o seu público em lágrimas. Construímos sobre a violência, acenda o pavio e corra. Construímos estranhas tensões de amor, em que tantas outras tensões se misturam para ser modificadas e transcendidas, e permita a fruição delas na mente do público. Construímos tensões, especialmente hoje, sobre doenças e então, se formos bons o suficiente, suficientemente talentosos, elas permitem que o nosso público fique doente. (…)
Se eu fosse dar conselhos aos novos escritores, se fosse dar conselhos ao novo escritor em mim mesmo, indo ao teatro do Absurdo, do Quase-absurdo, ao teatro das Ideias, a qualquer-tipo-de-teatro, enfim, aconselharia o seguinte: não me conte piadas insípidas. Rirei da sua recusa em deixar-me rir.
Não construa para mim tensão em relação a lágrimas e recuse as minhas lamentações. Vou buscar melhores muros de lamentação.
Não cerre os meus punhos por mim e esconda o alvo. Posso acertar você, em vez dele.
Acima de tudo, não me cause náusea, a menos que você me mostre o caminho para o convés do navio.
Porque, por favor, compreenda que, se você me envenenar, devo ficar doente.”
O Zen e a Arte da Escrita me deixou com vontade de escrever cem ou duzentas palavras todos os dias.
Também me deixou com vontade de escrever contos.
E com vontade de ler As Crônicas Marcianas, de Ray Bradbury.
O Zen e a Arte da Escrita é altamente recomendável para qualquer um que ame a literatura. E imprescindível para quem escreve ou pretende escrever.