spoiler visualizarIsa Beneti 09/09/2020
Memórias dum capitalista bruto com visão reificada do mundo
Nessa narrativa rápida, dinâmica e concisa, que reflete em tudo a personalidade de seu narrador-protagonista, Graciliano Ramos constrói um dos mais perfeitos livros de memória da literatura brasileira, ficando à altura (com várias semelhanças, inclusive) de romances como Dom Casmurro, mas indo além dele no que tange à abordagem de questões universais e ideológicas.
A impressão que essa obra prima causa no leitor é de que cada frase foi precisa e perfeitamente calculada ao ser adicionada à narrativa: tudo contribui para o seu desenvolvimento, sem que nela haja nada a mais ou a menos. Afinal, logo de início, e também ao longo do livro, há capítulos metalinguísticos (em que o narrador discorre como foi/é o processo de escrita) que explicitam a intenção do narrador de escrever memórias para relembrar o passado, mas sem "besteiras" e "rococós" típicos da literatura, prezando pela objetividade. Isso, além de explicar o tom constantemente objetivo do texto, dá veracidade a ele. É interessante pensar que essa objetividade na realidade diz muito sobre o protagonista, que é um homem bruto com uma visão reificada do mundo, e acaba sendo um traço de subjetividade do narrador .
É esse o tom que predomina ao longo de toda a história, e é com ele que Paulo Honório narra sua infância/juventude aos cuidados da velha Margarida em menos de 3 páginas, numa rapidez e concisão impressionantes, desafiando o leitor a não pular uma palavra sequer da história a fim de não ficar perdido. Quando nos damos conta, Paulo já está preso por ter matado o amante de sua amante durante seus dias como trabalhador na propriedade de São Bernardo. Depois de 3 anos na prisão, onde aprende o básico das letras, Paulo sai designado a ascender socialmente. Para isso, arranja 100 mil réis com um agiota que lhe cobra altos juros (e quem ele assassina posteriormente como vingança) e com esse capital sai empreendendo pelo sertão, fazendo negócios, enganando e sendo enganado.
Desde esse começo de vida, já é possível entender, a partir das atitudes do protagonista, um pouco da sua personalidade forte, energética e violenta. Essas características tornam-se ainda mais perceptíveis quando ele estabelece (mais) um objetivo de vida: tomar posse de São Bernardo, cujo antigo dono havia falecido e que agora estava nas mãos de Padilha, um bacharel preguiçoso e sem experiência de vida. Rapidamente, Paulo se aproxima de Padilha e arma um plano contra ele a fim de obter a posse de São Bernardo: convence-o a investir na propriedade, empresta a ele muito dinheiro, de modo a deixá-lo endividado, fazendo com que ele hipoteque a fazenda. Obtida a propriedade, Paulo trabalha com afinco nela para conseguir seus primeiros lucros. Nesse trecho fica clara a esperteza e a determinação do protagonista em contraste com seu egoísmo e sua personalidade dominadora.
É nesse mesmo contexto que algumas personagens anteriormente citadas pelo narrador ganham mais forma, incluindo o político Padre Silvestre com suas ideias revolucionárias, o advogado João Nogueira e seu conservadorismo, o jornalista Azevedo Gondim e os trabalhadores da roça Marciano, Casimiro Lopes (seu jagunço) e o velho guardador de livros Seu Ribeiro. É interessante notar como Paulo na realidade não tem verdadeira afeição por nenhum desses "amigos", de quem constantemente reclama, e muito menos pelos trabalhadores, que são reificados pelo narrador, isto é, são visto como meros animais pelo seu "dono". Mas, entre eles, dois outros se destacam como inimigos de Paulo Honório, e ambos têm desfechos brutais: o falso jornalista Brito, que passa a direcionar críticas nos jornais a Paulo depois que parou de ser pago por ele, e por isso é perseguido e açoitado pelo próprio narrador. Outro rival era Mendonça, um político que fazia de tudo para aumentar suas terras (diminuindo as de S. Bernardo) e aliciar eleitores, e que trocava ameaças discretas com Paulo, que manda seus cabras o matarem. Todas essas personagens mostram como não apenas o protagonista, mas toda conjuntura ao seu redor era corrompida e egoísta, o que, até certo ponto, justifica algumas das brutalidades cometidas pelo narrador.
A narrativa começa a ganhar novos rumos, mas sem perder aquele mesmo tom, quando um novo objetivo é estabelecido pelo protagonista: tomar posse (não mais de uma propriedade) de uma mulher que lhe dê herdeiros. Nessa busca, Paulo acaba se encontrando com a inteligente professora Madalena, muito diferente do que imaginava para esposa, mas que passa a tomar grande parte dos seus pensamentos (o que é mostrado de maneira muito sutil em meio à narração objetiva). Assim, ele realiza a mais seca de todas as declarações da literatura, pedindo-a em casamento da maneira mais direta possível, tratando a questão como nada mais que um mero negócio (o que realmente era). Madalena pondera um pouco, mas acaba aceitando, talvez em busca de alguma ascensão social, tendo em vista que eles não se amavam, pois mal se conheciam.
Por conseguinte, vários conflitos vieram logo no início do casamento graças aos choques de personalidade entre o casal: Madalena recusava-se a se tornar "posse" de Paulo e lhe negava essa visão reificada não só das mulheres, mas das pessoas em geral, repreendendo-o em situações de abuso contra seus funcionários (os baixos salários de Seu ribeiro, as agressões contra Marciano e as más condições da escola de S. Bernardo). A humanidade, a bondade e a inteligência de Madalena quebram com todo o padrão de vida que Paulo seguia até então na narrativa, o que faz crescer, no protagonista, um grande ódio contra sua esposa.
Provavelmente como manifestação de seu "sentimento de propriedade" sobre todas as coisas e pessoas, Paulo é intensamente afligido por um incontrolável ciúme da mulher. Esse ciúme passa a ocupar a maior parte dos seus pensamentos, e a narrativa ganha traços claros de subjetividade, tal como a confusão e a desconfiança do narrador, que vê situações irreais, escuta passos de amantes e assobios que não passavam de pios de coruja. Ele começa a se irritar com todo e qualquer relacionamento da esposa, sobretudo com outros intelectuais, tal como Padilha (com quem achava que trocava ideias comunistas), João Nogueira, Seu Ribeiro e dr. Magalhães. Assim, Madalena torna-se triste, isolada e doente graças a complicações de seu parto (sim, eles tiveram um filho, mas Paulo nem liga para ele). As discussões do casal tornam-se cada vez mais brutais, com constantes ameaças por parte de Paulo e xingamentos como "assassino" de Madalena.
Numa de suas crises de ciúme, o narrador encontra uma carta da esposa no chão e logo pensa que é direcionada a algum homem. O casal acaba tendo uma longa discussão dentro da capela, onde Madalena reafirma sua inocência e pede que seu esposo seja uma pessoa melhor, além de lhe fazer alguns outros pedidos estranhos e suspeitos. No dia seguinte, Madalena é encontrada morta no seu quarto, e a carta achada por Paulo era, na realidade, um bilhete de despedida para ele.
Apesar de tudo ainda ser narrado de forma objetiva e concisa, os impactos dessa morte na vida do narrador são indubitáveis. Com a Revolução de 30, os moradores da fazenda e seus amigos vão o abandonando, e ele perde sua energia/dedicação que eram tão presentes na sua busca em ascender socialmente e ampliar seus domínios. A morte de Madalena significou não apenas a derrota do seu "sentimento de propriedade" (visto que ele nunca conseguiu subjulgar a esposa), mas a destruição de toda a vida e personalidade de Paulo Honório, que é reduzido a impotência e insegurança. Só resta, para ele, sentar e buscar significado para sua vida, recompondo-a através dessas memórias.
Chegamos, então, no tempo da narração (atual). Nessas reflexões finais, a narrativa ganha um tom completamente diferente, e o protagonista assume que a sua maneira de lidar com o mundo e a sua dificuldade em reconhecer a humanidade nas pessoas "estragou a minha vida(...) me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um coração miúdo" (lembrou-me muito de Ivan Ilitch). O narrador propõe, ainda, que essa personalidade agreste, egoísta e brutal seja consequência de sua profissão. Será mesmo? Afinal, ao analisarmos o texto de uma certa perspectiva, Paulo Honorário é a própria personificação da burguesia e da modernidade, que preza constantemente pela rapidez, pela reinvenção, pelo egoísmo e pelo sentimento de propriedade. Teria o modo de produção influenciado a consciência/personalidade/modo de ver o mundo do homem? Ou não seria o contrário?
É com essas e outras questões que Paulo Honório termina sua vida derrotado, sozinho, sem propósito e arrependido.