Jow 18/06/2012As Lágrimas de um gênio“Mas sei, que uma dor
Assim pungente
Não há de ser inutilmente
A esperança...”
O Bêbado e a Equilibrista - Elis Regina
Na capa de “Correio do tempo”, uma mulher de pele branca e cabelos loiros está de camisola clara e no fundo de uma piscina. Essa imagem límpida inspira tranqüilidade a quem a visualiza. Na contracapa, no entanto, temos a outra metade dessa figura: a mão esquerda da mulher está pressionada contra a parede de vidro da piscina, pressionada com força suficiente para que partes da palma e dos dedos tomem o tom de um horrível e pálido branco; não podemos ver sua face, que está sob o negro do design, que também pode ser visto como uma tarja. Já na capa do livro, temos a dualidade de sentimentos e a imersão poeticamente dolorosa das palavras de Mário Benedetti.
Os contos de "Correio do Tempo" chamam atenção, logo de saída, pelos subtítulos de cada uma das partes que compõem a coletânea: Sinais de fumaça; Correio do tempo; As estações e Colofão. Interessante observar que, de fato, os textos inaugurais podem ser definidos como esses sinais, índices muito preliminares do que, aos poucos, irá tomando corpo, no que se configurará a seguir. Assim, as narrativas dos Sinais de fumaça sugerem mais do que revelam, em diálogos densos que quase não explicitam nada, anunciando o que está por vir, tal como nas mensagens ritualísticas de comunicação entre certas tribos ancestrais, em que a fumaça exercia o poder subliminar de avisar que algo importante estaria acontecendo.
Já em Correio do tempo, a segunda parte da reunião dos contos que dão título ao livro, o que antes apenas se insinuara, de maneira esfumaçada, adquire forma, pois teremos consciências narrativas várias, que se expressam por meio de cartas. Da comunicação incipiente da fumaça, passaremos à força material da correspondência epistolar, de cartas escritas no papel, palpáveis registros do ocorrido; Assim, há um conto, todo estruturado em tenso diálogo, em Sinais de fumaça, cujo título é Dezenove. Em resumo, refere-se ao número de um preso político, o Dezenove, que, tendo sobrevivido à cruel carnificina dos que eram jogados vivos dos aviões no mar — prática muito comum à época das ditaduras militares do Uruguai, Chile e Argentina —, decide procurar seu carrasco para assombrá-lo. A narrativa é contida e aqui a maestria do diálogo bem-construído confere ao conto a precisão imagética, tão cara à linguagem cinematográfica, já que é possível “ver” a cena descrita.
Mas, em Benedetti, a representação da realidade do cárcere, enviesada pelo sonho, assume características muito peculiares. O autor caminha como um preso que acaba encontrando, ao sonhar, forças para resistir à dura realidade da cela. Aos poucos, transforma o mínimo mundo ao redor, tornando-se um maestro ao recriá-lo por meio das mais variadas e coloridas expressões oníricas. De certa forma, a superação do trauma do aprisionamento se viabiliza pela libertação possível no sonho.
Diante desse rol de sofrimentos, exílios, perdas e rupturas das mais variadas formas, poderia se ter a impressão de que Benedetti encarna a feição sisuda e carregada dos escritores assumidamente trágicos. Claro que, em sua alma de escritor, jazia uma profunda e dolorosa cicatriz — que inclusive aparece transfigurada nas cicatrizes de vários personagens, vítimas da violência do cárcere. Mas, aos poucos, na compreensão geral de sua criação, nota-se que ele não permanece refém da dor.
O que nos fica, como legado dessa obra de Mario Benedetti, talvez seja essa possibilidade de reinventar a vida, apesar de todos os exílios, pois em meio aos inevitáveis e penosos desafios do viver, há um preso que sonha; uma primavera que retorna.