Renato 18/01/2012
Um velho novo Saramago (publicada no Coletivo Amálgama)
Leia também esta resenha em:
http://www.amalgama.blog.br/01/2012/um-velho-novo-saramago/
por Renato Tardivo
renatotardivo.blogspot.com
Foi publicado recentemente o que talvez sejam os últimos originais deixados pelo escritor português – vencedor do prêmio Nobel em 1998 – José Saramago, falecido em junho de 2010, aos 87 anos. Curiosamente o livro em questão, Claraboia, foi o segundo romance escrito por ele, no início dos anos 1950, quando utilizava o pseudônimo “Honorato”.
Saramago já havia publicado um romance em 1947 – Terra do pecado. O livro de estreia não tivera boa acolhida, nem do público nem da crítica. Também como “Honorato”, o ex-serralheiro e jovem funcionário da previdência social (contava por volta de 30 anos) possuía alguns contos publicados em jornais e revistas. Nessa época, incentivado por um amigo artista plástico, o escritor submeteu Claraboia a uma editora de Lisboa, mas não obteve retorno e os originais sequer foram devolvidos. Veio o silêncio: José Saramago só publicaria outro livro, Manual de pintura e caligrafia, cerca de 24 anos mais tarde.
Na década de 1980, quando o escritor português já era mundialmente consagrado, a editora que o ignorara 30 anos antes propôs a publicação de Claraboia. Não se sabe ao certo se magoado ou ocupado com a produção de outros livros – o autor escreveu inúmeras obras entre a década de 1980 e o seu falecimento, em 2010 –, ou provavelmente devido aos dois motivos, Saramago decidiu não publicá-lo em vida, deixando a decisão para os seus herdeiros.
Bem, se já não bastasse a novela de 60 anos em torno do livro, vale dizer que sua leitura é válida. No entanto, isso não se deve, ao menos não primordialmente, à qualidade do romance. A propósito, aliás, o comumente lúcido José Saramago disse que o livro era “ingênuo”, mas que não se tratava de um romance “mal construído” e que possuía “coisas que já têm que ver com o meu modo de ser”. Tendo a concordar.
Claraboia tem mais de 350 páginas distribuídas em exatos 35 capítulos. Os longos períodos e parágrafos, a pontuação própria, a prosa que por vezes demanda algumas páginas até que o leitor se acostume, enfim, a marca própria que Saramago consolidou a partir de livros como Memorial do convento e Levantado do chão e com a qual se notabilizou em O Evangelho segundo Jesus Cristo e Ensaio sobre a cegueira, não figura ainda em Claraboia. Neste velho novo Saramago, as frases são curtas, a prosa é ágil e a leitura flui – da primeira à última página.
A epígrafe, de Raul Brandão, diz o seguinte: “Em todas as almas, como em todas as casas, além da fachada, há um interior escondido”. É este “interior” que o romance procura habitar. No primeiro capítulo, a partir da casa de Silvestre, um velho sapateiro, e sua esposa Mariana, tomamos contato com os habitantes dos demais apartamentos de um prédio. Nos demais capítulos, salvo raras exceções, as histórias dos vizinhos praticamente não se cruzam – cada capítulo é dedicado a um “interior escondido”.
Um casal infeliz, cuja filha morrera ainda nova, quatro mulheres solteiras – duas velhas, duas irmãs mais jovens (filhas de uma, sobrinhas da outra); um casal que (aparentemente) não se gosta mas cuja relação se transforma pelos olhos do filho; uma jovem e bela senhorita que sustenta a mãe com os ganhos do corpo; uma família que vislumbra o potencial da filha subir de vida; o velho sapateiro e sua esposa que, para equilibrar os gastos, alugam um dos quartos do apartamento para o jovem aventureiro Abel. Um verdadeiro microcosmo que, nessa medida, lembra o clássico O cortiço, de Aluísio Azevedo.
É interessante vislumbrar passagens (já) dignas de nota: “Duas mulheres velhas e duas que já voltavam costas à mocidade. O passado para recordar, o presente para viver, o futuro para recear”; “Vivia dentro de si mesma, como se estivesse sonhando um sonho sem princípio nem fim, um sonho sem assunto de que não queria acordar, um sonho todo feito de nuvens que passavam silenciosas encobrindo um céu de que já se esquecera”; “Ninguém sabe se esquece antes de esquecer”; “Não gosto de ser agarrado e a vida é um polvo de muitos tentáculos. Um só basta para prender um homem”; “Ter não é possuir. Pode ter-se até aquilo que não se deseja. A posse é o ter e o desfrutar o que se tem”; “Mas entre o ser e o parecer há sempre um ponto de entendimento, como se ser e parecer fossem dois planos inclinados que convergem e se unem”; e ainda haveria outras.
Em outros momentos, fica nítida a busca de Saramago pela própria linguagem – com a qual, felizmente, viria a se encontrar anos mais tarde. Shakespeare, Eça de Queirós, Dostoiévski, algumas vezes utiliza-se o recurso da intertextualidade. Seja como for, lampejos do Saramago maduro comparecem neste livro, e não apenas enquanto potencialidade senão enquanto realidade: “Abel pensou, tornou a pensar e, no fim, tinha diante de si apenas a pergunta”. Não seriam estas – as perguntas – o motor da prosa de José Saramago? É provável, vale dizer, que se escrevesse o romance em sua fase madura o autor mergulharia de forma ainda mais radical em apenas um daqueles interiores escondidos. Silvestre, Mariana e Abel? Possivelmente.
O jovem Abel, o estranho/familiar, disparador do início e do desfecho do romance, trava com o velho Silvestre belos diálogos – os diálogos envolvendo também as demais personagens são bem construídos. Temas como liberdade, desejo, união e desunião entre os homens – impossível não localizar os germes de Ensaio sobre a cegueira, A caverna, O Evangelho segundo Jesus Cristo – dão a tônica do embate entre o novo e o velho e – por que não dizer? – do próprio romance Claraboia – ele mesmo emblema do embate entre o novo e o velho José Saramago.
No entanto, se por um lado os múltiplos enredos são emblema da procura de Saramago por uma terra mais segura, por outro, vale destacar a sutileza com que o escritor maneja a luz que atravessa as diferentes janelas mas passa pela mesma claraboia: “O sol entrava pelos vidros da marquise e projetava no chão a sombra da armação de ferro como se fossem grades”. Mas, sobretudo, fazendo um exercício metonímico, Claraboia sobe de escala quando colocado em perspectiva com os livros que o velho Saramago ainda escreveria. Porque, em si mesmo, não é mais que um bom romance. E de (apenas) bons romances, para o bem ou para o mal, o mundo está cheio.