Marido e Outros Contos

Marido e Outros Contos Lídia Jorge




Resenhas - Marido e outros contos


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Alexandre Silveira 22/08/2017

Salazar, Deus e estranhezas
Nunca antes, após as revoluções feministas ocorridas no século XX, foram debatidas tantas questões acerca da posição da mulher no mundo dentro de obras literárias. Obviamente que figuras ilustres já haviam se atentado para essa questão em séculos passados, tais como Jane Austen e Beatriz Francisca de Assis Brandão, mulheres que se destacaram pelo simples fato de se alfabetizarem e entrarem no campo literário, sendo este majoritariamente dominado por homens. Entretanto, o debate feminista e em denúncia ao machismo ganhou e vem ganhando força, não apenas na nossa sociedade contemporânea, mas também em vários outros países do mundo.

   Como um excelente exemplo da representação do machismo na literatura contemporânea, temos o conto ‘Marido’, presente na obra “Marido e outros contos”, publicada em 1998 pela Publicações Dom Quixote, da algarvia Lídia Jorge. Nessa narrativa, a autora descreve o cotidiano de Lúcia, uma porteira de um prédio que sofre abusos do marido alcoólatra. Como o narrador está sempre acompanhando os pensamentos de Lúcia e explicitando-os ao leitor por meio do discurso indireto livre, sabemos que ela não deseja se separar do marido opressor, mesmo quando outros moradores do prédio lhe oferecem ajuda para tal feito. A personagem não consegue visualizar seu mundo sem o homem a quem, para ela, deve se entregar por toda a vida. A separação, que seria um grande ato de independência feminina, é recusada com veemência pela protagonista, que se incomoda com a intromissão dos vizinhos em sua vida, voltando a submeter-se ao homem, o que, no fim da narrativa, termina em uma tragédia simbólica. A partir dessa narrativa e de nossa vivência em sociedade, percebemos que Lúcia representa outras tantas mulheres que sofrem abuso doméstico em silêncio, sempre submissas à figura masculina, que representa, no conto, a repressão, a injustiça e o medo.

   “Marido e outros contos” traz, além do conto discorrido, mais seis estórias que carregam consigo críticas ao modo de vida da sociedade portuguesa atual. A figura da mulher também está sempre presente nos outros contos, seja como protagonista ou como personagem secundária, mas sempre possuindo uma função significativa para as narrativas.

   Além disso, o livro também é permeado por críticas ao regime salazarista que vigorou em Portugal durante cerca de quarenta anos. A ditadura de António Salazar, reconhecida pela inspiração nos ideais fascistas que eclodiram em profundos horrores no século passado, igualmente sangrenta e opressora como qualquer governo autoritário, é retratada no livro de Lídia de forma muito sutil. O período histórico se manifesta através da incapacidade de alguns personagens (principalmente as mulheres) de refletir racionalmente sobre a realidade em que se encontram, estando sujeitos a possíveis manipulações e imposições, como a sociedade portuguesa sofreu durante o regime.  

   Os contos de Lídia Jorge  causam uma certa estranheza ao leitor, justamente pela maneira irracional que alguns de seus personagens agem, como no conto ‘Espuma da Tarde’, onde um homem portando uma arma de fogo sobe na mesa de um restaurante, mas os presentes no recinto não se sentem ameaçados e nada fazem para impedi-lo de atirar em um determinado lugar. Isso serve para causar no leitor a sensação de intriga, talvez até de surpresa, levando-o à reflexão crítica das narrativas.

   No livro, há também reflexões existenciais e metafísicas, como no conto 'A prova dos pássaros', onde um professor busca provar a existência de Deus com base na contagem de uma revoada de pássaros ao pôr do sol. O que mais salta aos olhos nesse conto é o fato de que, se fosse assim tão fácil descobrir a presença de Deus no mundo, do ponto de vista de quem duvida de sua existência (figura representada pelo professor), bastaria contar qualquer revoada de pássaros em qualquer lugar do mundo e saberíamos. Logo, penso que a busca por Deus e a prova de sua existência ou inexistência é simplesmente subjetiva e feita ao acaso, se levarmos em consideração o raciocínio do protagonista. Achei muito interessante esse conto justamente por ele confirmar uma opinião minha sobre o tema. 

   Então, tendo em vista o potencial de “Marido e outros contos” para instigar a leitura crítica em seus leitores, notamos que Lídia Jorge faz jus em estar entre as principais autoras portuguesas da atualidade. O livro é, portanto, um grande suporte para fomentar as discussões feministas que chegam ao nosso tempo, além de trazer referências cinematográficas e literárias interessantes. 

site: https://paomanteigaecafeblog.wordpress.com/
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