Fabio 19/04/2024
"Um oceano de lágrimas"
Publicado em 2003, "O Caçador de Pipas", é o premiadíssimo romance escrito pelo afegão Khaled Hosseini, e nos conta a bela e melancólica história de Amir, um garoto afegão que, atormentado pela compunção da traição, passa a vida desejando obstinadamente por redenção e paz de espirito.
Ambientando em um período turbulento da história do Afeganistão, entre 1970 e 2001, conhecemos boa parte do passado recente da nação, desde a pré-guerra, o golpe militar, permeando a invasão dos comunistas, até o domínio talibã, e o desmoronamento das estruturas sócio-políticas e econômicas do pais.
Narrado em primeira pessoa em forma de relato autobiográfico sob perspectiva de Amir, somos apresentados a um protagonista complexo, repleto de imperfeições e contradições, que nasceu em "berço de ouro". Filho único, sem a mãe, vive em um ambiente predominantemente masculino, portanto tenta de todas as maneiras a aprovação do pai (Baba), um rico, influente e respeitado homem da sociedade afegã, que por ser autêntico e pugnador, sempre conseguiu seus intentos, e detém, portando o mais alto prestigio dentro da comunidade em Cabul. Amir, ainda nos apresenta a Hassan, que por sua vez, é um garoto de origem humilde, de coração nobre e leal, cheio de vida, filho de Ali, intendente de Baba. A trama se desenvolve em torno da complexa relação entre Amir e Hassan, que ao compartilharem uma profunda e misteriosa conexão, provam do amor à inveja, da coragem à covardia, da traição ao arrependimento. A amizade entre os dois garotos é provada diversas vezes ao longo da história, e as convenções sociais e culturais, a intolerância religiosa, sobretudo o etnocentrismo arábico, acabam por influenciar essa amizade e evidencia discrepância moral entre os dois jovens.
"O Caçador de Pipas" nos entrega um enredo não linear, que alterna entre flashbacks da infância de Amir em Cabul e sua vida adulta nos Estados Unidos, e essa estrutura narrativa imprime ainda mais complexidade a história, nos revelando que as escolhas e ações do passado, afetam de forma avassaladora o presente e o futuro, e que os traumas adquiridos, são como grilhões que nos aprisionam por toda uma vida.
Combinando intensidade, sensibilidade e gravidade, Khaled Hosseini, nos entrega um belíssimo e ardoroso texto, de narrativa fluida e envolvente, repleto de reviravoltas inesperadas, cenas enternecedoras e passagens extremamente melancólicas, que enlaça o leitor desde as primeiras linhas, e o conduz por caminhos soturnos, quando nos apresenta o pior do ser humano e suas atrocidades.
"O Caçador de Pipas" é uma jornada de autoconhecimento, remissão e reconciliação, que nos impõe a refletir sobre as nossas próprias escolhas e a maneira como lidamos com as consequências da precedente volição. E nos convida a encarar o cerne dos nossos medos, das nossas aflições, sobretudo nos incita a escrutinar o âmago do ser, e a distinguir a origem dos nossos traumas, e os incômodos entraves que nos acompanham ao longo da vida.
Hosseini, descreve com maestria, a essência do pais e de seu povo e nos transporta de forma vivida a um Afeganistão dos anos 70, prospero e sereno, e que invadido pelas forças soviéticas, perderam sua essência, e o bem mais precioso, a liberdade. Entretanto, o autor, atinge o leitor ao evidenciar de forma bem minuciosa e explícita, que a maior derrocada afegã surgiu no seio do seu próprio povo, quando o regime talibã destroçou a nação com a barbárie e a miséria. E essa ambientação incrivelmente realista e fiel, contribui para a imersão e nos apresenta de forma magistral a cultura afegã e suas peculiaridades.
"O Caçador de Pipas", aborda ainda temas universais como a busca por redenção e paz de espírito, o peso da culpa, a importância das relações afetivas e das amizades verdadeiras, a complexidade das relações familiares e as convenções sociais, e também discorre sobre conservadorismo, e a desvalorização da vida humana durante a guerra.
Em "O Caçador de Pipas", vislumbramos ainda, o talento excepcional de Hosseini na contrução e desenvolvimento de personagens, e mesmo o elenco secundário, cresce de forma acentuada e influência no desenvolvimento e na contrução do enredo, e acaba por contribuir e abrilhantar a trama, e dar ainda mais vivacidade e tonalidade a historia.
Em Suma, "O Caçador de Pipas" é uma obra-prima da literatura contemporânea, que, pungente, emociona, ilumina e remete a uma profunda reflexão sobre a condição humana e suas relações. Hosseini teceu uma uma trama enternecedora e complexa, que ecoa em nossas mentes muito tempo após o término da leitura, manifestando interiormente uma profunda reverberação e uma cartase pessoal. Ao perscrutar a mente, Hosseini, nos propõe dilemas dicotômicos entre a honradez e a covardia, entre o medo e a coragem, entre o amor e o ciúmes, entretanto, não condena ou exalta, mas, de forma tácita no ensina que, invariavelmente todo ser busca por redenção, e todo aquele que a encontra, descobre a verdadeira paz.
Raras vezes na minha vida como leitor eu me deparei com um livro tão emocionante, capaz de tocar tão profundamente no coração como "O Caçador de Pipas". Sua narrativa sensível e melancólica deixou marcas indeléveis em minha experiência literária.