Peregrina 22/03/2020
Não andeis ansiosos... (Mt 6:25-34)
Olhai os lírios do campo, publicado em 1938 por Érico Veríssimo, é um dos motivos pelos quais a nossa literatura é tão rica e deve ser apreciada. Não é um livro fácil: por vezes, incomoda. Incomoda porque se vale de um dos discursos mais famosos de Cristo para nos fazer acordar e enxergar, como o próprio Eugênio o fez em determinado momento da história, as nossas mesquinharias, ambições fúteis e tolas e como vivemos boa parte das nossas vidas olhando para nós mesmos, centrados nos nossos próprios desejos. A alfinetada é sutil, contudo, está lá e se você estiver bem atento, notará que não é apenas o protagonista desta trama que é egocêntrico e materialista.
Dito isso, passemos ao enredo. Olhai os lírios do campo é dividido em duas partes. A primeira narra a história da vida passada de Eugênio, o protagonista, intercalando com momentos do presente. A cada capítulo acompanhamos situações que moldaram o personagem e o transformaram em um ser inumano, enfadonho, murmurador e insatisfeito com a vida. Ele permanece assim até o momento em que conhece Olívia. Na verdade, ele continua sendo essa pessoa detestável e pela qual não nutrimos qualquer afeição, mesmo depois de conhecer a personagem feminina central desta história e nós observamos o seu processo de mudança e amadurecimento a partir de então.
Olívia é uma moça singular. Sendo a única aluna mulher do curso de medicina que também tem por aluno o próprio Eugênio, ela tem uma filosofia de vida totalmente oposta da filosofia do protagonista e de toda uma geração. Olívia não tem ambições, apenas um desejo ferrenho de fazer o bem, amenizar sofrimentos, ouvir e consolar. Ela crê em Deus, ao contrário do amigo, e crê fervorosamente na efemeridade da vida e no nosso dever de praticar boas ações, pensar no coletivo em detrimento de nós mesmos, amar, ajudar, servir. Nunca chegamos a conhecer a fundo o seu passado, entretanto sabemos que nem sempre ela foi assim. Não obstante, aprendemos (ou lembramos) com Olívia que cada dia é uma nova oportunidade para recomeçar e, enquanto estamos vivos, as chances se renovam a cada manhã.
Mesmo tendo contato com as ideias de Olívia, a princípio, Eugênio permanece estável em suas convicções e no seu materialismo exacerbado, vendo em Olívia apenas uma boa amiga que o satisfazia e ouvia seus melodramas. Todavia, a partir da segunda metade do livro, após alguns acontecimentos marcantes que constituem um divisor de águas em sua vida e na história, Eugênio começa a visualizar tudo ao seu redor sob uma perspectiva bem distinta da que estava costumado, isto é, pelo mesmo olhar da amiga e é só então que todos os seus conceitos e tudo aquilo que ele tinha como verdade e constante caem por terra.
Pois bem. A experiência de leitura da segunda parte foi bem melhor do que a primeira, mas esta foi essencial para compreendermos o estado deplorável de espírito e a podridão de caráter de Eugênio a fim de que a mudança pela qual ele passou se tornasse tão significativa e memorável tanto para o protagonista quanto para nós leitores. Veríssimo capturou bem os anseios de uma juventude vazia de sentido e de significado dos anos 1930 que, infelizmente, permanece da mesma forma quase 80 anos depois da publicação do livro, senão pior. É por isso que esta história é tão relevante até hoje. É bela e poética, sem deixar de ser verdadeira, desnudando o melhor e o pior do ser humano.
Naquela época, a urbanização prometia maior integração entre as pessoas, o famoso "progresso". Hoje, a globalização é quem faz às vezes. E qual foi e qual tem sido o resultado? Pessoas cujas almas estão cada vez mais inquietas, enclausuradas em seus apartamentos e salas comerciais, alheias ao que acontece do lado de fora do grande Megatério erguido por Felipe, amigo de Eugênio. Hoje, não é muito diferente, substitua os apartamentos e salas pelas redes sociais e o Megatério pela internet e encontraremos pessoas tão absortas da realidade quanto na década de 1930 e nas que sucederam. Existem para serem vistas e apreciadas, incapazes de compreender o outro e de, genuinamente, viver. Pois, em meio ao afã por melhores condições financeiras, por deixar sua marca do mundo, não é apenas Eugênio olvida a existência do próximo, que abandona quase que inconscientemente a sua humanidade, mas milhares de outros Eugênios, Filipes, Eunices, Castanhos que, hoje, passam a vida sem vislumbrar aquilo que o protagonista de Olhai os lírios do campo custou a aprender e que Olívia lutou tanto para ensinar: a vida é um sopro, o que importa não é o que a gente é, mas aquilo que nós fazemos para os outros.
Enfim, eu poderia falar sobre este livro por horas, mas preciso fazer o almoço agora, então finalizo esta resenha recomendando muito que você, que teve a paciência de me ler até aqui, leia esta obra-prima da nossa literatura. É rica, é bela e é salvacionista sim, como apontou o autor criticando a si mesmo anos depois da publicação do livro. Mas não é em busca de salvação que andamos todos errantes nesta vida miserável? Salvação do mal, salvação de nós mesmos.