Janaina Rico 28/05/2010
Olhai os lírios do campo
Eu estava envolvida com "Crime e Castigo", uma obra de dois volumes e 600 páginas. Bastante empolgada, na verdade. Mas eis que o Samuel (maridão) veio me visitar aqui no Rio e trouxe alguns livros do Erico Verissimo. Sem interromper Dostoievisky, iniciei a leitura de "Olhai os Lírios do Campo".
Não consegui mais parar. A primeira parte do livro, onde é apresentado o "Eugênio", é instigante. Erico Verissimo mescla passado com presente, e traz a infância e adolescência do personagem junto com a angústia dele de chegar até "Olívia" que se encontra gravemente doente.
Porém não senti a mesma intensidade na segunda parte. O autor filosofa seguidamete, deixando a leitura meio monótona. O então médico Eugênio vive uma crise existencial e muda radicalmente a sua vida e seus valores, ao assumir a paternidade e a profissão.
Excelente livro, mas o próprio Veríssimo reconhece que a Olívia é uma personagem que não existiria na vida real. Concordo com ele. Abaixo segue a transcrição do prefácio do livro.
Com a publicação de Olhai os Lírios do Campo operou-se uma mudança considerável em minha vida. O romance obteve tão grande sucesso de livraria, que se esgotaram dele várias edições em poucos meses, deixando editores e escritor igualmente satisfeitos e perplexos. Tamanha foi a influência desse livro no espírito de certos leitores, que ele teve a força de arrastar consigo os romances que o autor publicara até então em tiragens modestas que levavam quase dois anos para se esgotarem.
Posso afirmar que só depois do aparecimento de Olhai os Lírios do Campo é que pude fazer profissão da literatura.
Como explicar o êxito desse livro? Talvez se deva à sua natureza romântica e ao fato de ter uma "intriga". Olívia transformou-se numa espécie de ídolo dum vasto público, feito principalmente de mulheres. Suas cartas passaram a ter para muita gente um sabor evangélico.
Confesso, entretanto, que não tenho muita estima por esse romance. Acho-o hoje um tanto falso e exageradamente sentimental. Sua popularidade às vezes chega a me deixar constrangido.
Vejamos claramente o que tenho contra ele. Para principiar, a construção. A primeira parte é intensa e cheia dum interesse que jamais enfraquece. Na segunda, porém, esse interesse declina, e a história se dilui numa série de episódios anedóticos sem unidade emocional. Eu mesmo já tratei de justificar esse defeito dizendo que a vida no fim de contas é assim, isto é, não se trata de algo simétrico e arrumado como nos romances bem-feitos. A verdade é que nem eu mesmo consegui aceitar avalidade de meus próprios argumentos.
A dedicação, o altruísmo e a nobreza de Olívia me parecem inumanos. Não convencem. Pouco convincente também é a covardia de Eugênio. A cena em que o vemos a fazer a sua primeira operação, do ponto de vista da mera redação, está razoavelmente bem feita; do ponto de vista da verdade psicológica, porém, é um absurdo. Um homem de estômago fraco e que tem horror ao sangue jamais se dedicaria à cirurgia e, se se dedicasse, com o tempo acabaria por habituar-se a cortar a carne dos pacientes sem que isso lhe provocasse arrepios, náusea ou medo. Acaso não teria ele, como estudante, freqüentado o necrotério e os ambulatórios da Santa Casa?
Ao dar com Florismal, na última releitura que fiz de Olhai os Lírios do Campo, lembrei-me do Cuca Lopes de O Tempo e o Vento. (A parecença, no entanto, é meramente física.)
O pavor de Eugênio ao despertar no quarto escuro do internato numa noite de tempestade (Quem sou? Onde estou?), havia de repetir-se muitos anos mais tarde em O Continente, com Bolívar Cambará na sua noite de angústia, na véspera do enforcamento do negro Severino.
Como Bolívar, o Mr. Tearle de Olhai os Lírios do Campo vivia assombrado pela lembrança dum homem que matara na guerra.
E, como muitas de minhas personagens em diversos romances, Eugênio sente quase todas as emoções no estômago, na forma duma náusea.
Há em Olhai os Lírios do Campo uma filosofia salvacionista barata que me faz perguntar a mim mesmo como pude escrever tais coisa, mesmo levando-se em conta o fato de ter atribuído essa filosofia a personagens do livro.
Não posso, no entanto, afirmar que o romance me desagrade de princípio a fim. Encontro nele páginas que ainda hoje me comovem e parecem das melhores dentre quantas este autor haja escrito en su perra vida, como diria Don Pepe García. Entre elas destaco a cena em que Eugênio à hora do jantar encara o pai, depois de ter fingido não conhecê-lo na rua àquela tarde; e a da visita do mesmo a Florismal, que está à morte num leito da Santa Casa de Misericórdia; e ainda muitos dos diálogos entre Olívia e Eugênio.
Talvez Olhai os Lírios do Campo deva ser considerado mais uma parábola moderna na forma de romance do que um romance propriamente dito.
Seja como for, aqui está o livro, com algumas correções no que diz respeito à linguagem.
Se a história deu prazer a tanta gente (a julgar pelos milhares de cartas que até hoje venho recebendo e por manifestações pessoais de viva voz da parte de incontáveis leitores), não vejo razão para impedir que ela continue a sua carreira.