lucasfrk 29/07/2024
Olhai os Lírios do Campo ? comentário
(Trecho retirado de minha resenha no Medium)
?Felicidade é a certeza de que a nossa vida não está se passando inutilmente.? (p. 288)
O quinto romance de Érico Veríssimo, Olhai os Lírios do Campo (1938), é uma obra paradigmática na carreira do escritor gaúcho ? e uma de suas mais emblemáticas obras. Este romance é uma crítica social arguta que evoca temas como o amor, a ética, e principalmente, as desigualdades sociais no Brasil da primeira metade do século XX. Sob estrutura do romance urbano, o livro é baseado em oposições entre personagens, situações e intercalações de caráter temporal. Conta-se a triste trajetória existencial de Eugênio Fontes, um médico dividido entre o amor que sente pela colega de profissão, Olivia, e a ambição por ascensão social e estabilidade financeira. Se trata, portando, do primeiro grande sucesso literário de Érico Veríssimo e que lhe rendeu projeção nacional.
A obra trata do cotidiano das camadas médias urbanas e focaliza a capital gaúcha de Porto Alegre dos anos 1930, retratando a história dum homem que cresceu numa família pobre e que, obcecado pelo sucesso social, renega o passado da família e abandona a pessoa que ama por um casamento de conveniência, vivendo frustrado e amargurado em meio à alta classe, ao qual não se sente inserido, até que enfim surge a morte para o humanizar diante do sofrimento.
?Eugênio tinha uma grande pena do pai, mas não conseguia amá-lo. [?] Mas, por mais que se esforçasse, Eugênio não lograva ir além da piedade. Tinha pena do pai, isso sim. Porque ele tossia, porque suspirava, porque se lamentava, porque se chamava Ângelo.? (p. 26)
?Depois vinham os outros. Os outros... Os que o amaram sem pedir compensações, os que não lhe exigiram nada e lhe deram tudo. O pai obscuro, humilde, humilhado, ferido de morte pela vida. A mãe que sacrificara sua mocidade ao marido, aos filhos, ao lar. Agora ambos estavam mortos. Era o irremediável. E para Eugênio o que mais dói é a certeza de que se lhe fosse dado viver de novo os anos da infância e da adolescência, ele não poderia portar-se de outro modo, não lograria amar os pais como eles mereciam. Pensa em Olívia. Ela lhe deu tudo quanto uma mulher pode dar ao homem que ama. Como ele foi insensato! Teve nas mãos um tesouro fantástico e ? néscio! ? jogara-o fora. Levou anos para compreender Olívia. O desejo de sucesso, a preocupação de olhar para si mesmo o tornaram cego a tudo quanto o rodeava. Ele queria subir, a mediocridade o sufocava, a pobreza cheirava a morte. E a sua carreira finalmente tinha sido como um elefante sagrado caminhando sobre um tapete de criaturas humanas, de almas que suas patas brutais esmagavam. Agora todo o seu velho sonho está desfeito em poeira, é como cinza áspera que lhe foge por entre os dedos, deixando-lhe na alma um ressaibo amargo.? (p. 35)
A narrativa funciona muito em decorrência de dicotomias (no início, por exemplo, existe a oposição entre Eugênio e o pai; mais tarde, entre Eugênio e Olívia; Eugênio e Eunice; Eunice e Olívia; Eugênio e a amante Isabel; e Eugênio e o Dr. Seixas (que seria elemento conjuntivo entre este livro e Saga); até o final, entre Eugênio e a filha, Anamaria). Veríssimo utiliza uma técnica de narração em terceira pessoa que permite ao leitor uma visão panorâmica das vidas e dos sentimentos dos personagens. Ele se afasta um pouco da linearidade tradicional, entrelaçando passado e presente de forma a construir uma narrativa fragmentada, que reflete a própria fragmentação da identidade do protagonista. A memória, nesse sentido, não se dá apenas como um registro do passado, mas uma construção ativa, moldada pelos desejos e pelas angústias do presente.
?E quando falo em aceitar a vida não me refiro à aceitação resignada e passiva de todas as desigualdades, malvadezas, absurdos e misérias do mundo. Refiro-me, sim, à aceitação da luta necessária, do sofrimento que essa luta nos trará, das horas amargas a que ela forçosamente nos há de levar.? (p. 154)
Na primeira parte, a narração intercala presente e passado, avanços e recuos temporais (flashbacks/flashforwards), realizando uma justaposição do tempo e do espaço. Através de uma estrutura operística e de suspensão temporal, a viagem desesperada de Eugênio até o hospital onde Olivia se encontra em estado crítico de saúde alterna-se com as rememorações da infância e da juventude infelizes do personagem, revisitando suas atitudes e seus pensamentos questionáveis, e que se contrapõe à segunda parte, que, por sua vez, se responsabiliza por sublimar o conflito do protagonista e torná-lo mais humano aos olhos do leitor, quando ele finalmente se arrepende e, por fim, muda os rumos de sua vida na prática médica solidária e na criação da filha visando, finalmente, sua paz interior.
Essa técnica narrativa de intercalação temporal, de além de conferir um ritmo dinâmico à obra, permite ao autor explorar a subjetividade da experiência humana. O tempo, assim, não é absoluto, mas sim experimentado de forma singular por cada personagem, moldado por suas percepções e emoções. As passagens em que Eugênio relembra de sua infância, por exemplo, não é uma mera descrição do passado, mas sim uma reinterpretação do passado à luz do presente, revelando as marcas e o sentimento de culpa que aquelas experiências deixaram em sua vida.
?Há em Olhai os Lírios do Campo uma filosofia salvacionista barata que me faz perguntar a mim mesmo como pude escrever tais coisas, mesmo levando-se em conta o fato de haver atribuído essa filosofia a personagens do livro.? (p. 18, prefácio do autor)
Sendo um dos maiores escritores do modernismo brasileiro, Érico Veríssimo compõe um romance tremendamente sentimental ? porventura apelativo e simplista ?, onde expõe algumas fragilidades de sua composição ficcional (tal como a pouca profundidade psicológica das personagens). Além da unidimensionalidade de personagens como Olivia ? que parece ter sido forjada unicamente como um adereço, uma espécie muleta narrativa que serve de desenvolvimento e elevação para o protagonista, surgindo como uma figura espectral e encarnando na filha Anamaria (embora seja uma das figuras mais esplêndidas daquelas criadas por Veríssimo, como Fernanda, como Ana Terra, como Bibiana?) ? o próprio Érico criticou o idealismo da obra. Por outro lado, ainda é um livro muito pertinente em suas temáticas bem como competente em invenção literária.
?Estive pensando muito na fúria cega com que os homens se atiram à caça do dinheiro. É essa a causa principal dos dramas, das injustiças, da incompreensão da nossa época. Eles esquecem o que têm de mais humano e sacrificam o que a vida lhes oferece de melhor: as relações de criatura para criatura. De que serve construir arranha-céus se não há mais almas humanas para morar neles? Quero que abras os olhos, Eugênio, que acordes, enquanto é tempo. Peço-te que pegues a minha Bíblia que está na estante de livros, perto do rádio, leias apenas o Sermão da Montanha. [?] Os homens deviam ler e meditar esse trecho, principalmente no ponto em que Jesus nos fala dos lírios do campo que não trabalham nem fiam, e no entanto nem Salomão em toda a sua glória jamais se vestiu como um deles. [?] Precisamos, entretanto, dar um sentido humano às nossas construções. E, quando o amor ao dinheiro, ao sucesso nos estiver deixando cego, saibamos fazer pausas para olhar os lírios do campo e as aves do céu.? (p. 153)