rbolelli 05/08/2022
Cinquenta e três anos, sete meses e onze dias.
Amor. Sua beleza e sua feiura. Sua alegria e seus pezares. Um sentimento de certa forma indefinível em sua imensidão, mas presente na vida de cada ser existente de forma única e, por isso, dispensa a necessidade de definição. Muitas vezes resumido à sua expressão romântica, a extensão desse terrível e maravilhoso sentimento abrange toda a vida de forma que esta se torna completamente um molde do amor. Pra mim, de certa forma esse livro foi sobre isso. Sobre como a vida é moldada pelos diversos tipos de amor que conhecemos e construímos durante nossa existência.
De um modo geral, esse livro poderia ser apenas sobre a relação entre Florentino e Fermina, que durante a infância construíram uma paixão sustentada pela troca de cartas e posteriormente pela comunicação via telegráfo. Após uma viagem por esforços do pai, Fermina percebe que essa paixão era uma ilusão e a relação dos dois é descontinuada. Florentino, por si só, continua nutrindo um sentimento de amor por Fermina durante toda sua vida, com a certeza de que algum dia seriam felizes juntos, mesmo após Fermina se casar. Tal história de amor bizarra (e até bem doentia) segue a vida dos personagens, e serve no meu parecer como um pilar, um fundamento para a construção da real grandiosidade do livro.
A sensacional narrativa característica do Gabo apresenta uma cronologia presa aos personagens que atua praticamente como uma biografia onisciente. O leitor acompanha a vida inteira dos personagens principais, com seu crescimento e maturidade, suas ações boas e absurdas, seus erros, suas dores, suas dúvidas. Dito isso, são pelas relações construídas pelos personagens durante a vida que nos são apresentados os tipos de amor do mais puro ao mais nojento. É notável durante todo o livro como é condizente da própria natureza humana se agarrar a algo e criar um sentimento de amor para a manutenção da sanidade, mesmo que inconscientemente.
Exemplifico meu pensamento com Florentino. Durante toda sua vida, nutriu o sentimento sem reciprocidade por Fermina, e viveu sua vida inteira em função disso de tal forma que cuidava bem de sua vida com a premissa de estar preparado para seu amor no futuro. Ao meu ver, isso apenas fez com que Florentino descobrisse ao longo de sua vida o amor pelo trabalho, o amor próprio, o amor prazeroso, para calar as necessidades do corpo, o amor platônico, amigável e viveu o amor familiar com sua querida mãe. E ele foi feliz assim. Em certa parte do livro eu nem soube mais dizer se Florentino realmente amava Fermina, ou apenas amava a sensação de amar ela, pela qual esteve agarrado durante toda sua vida, e por esse simples sentimento de propósito, viveu por inteiro.
A obra apresenta também o lado negativo da influência do amor. Demonstra seu peso pelo término da vida por falta dele, ou por sua presença excessiva, e também critica a concepção mais romântica do sentimento, principalmente por vista do amor conjugal entre Fermina e seu marido, Doutor Urbino. A monotonia e todos os conflitos da relação dos dois contrasta com a imagem pública de casamento feliz e construtivo que ambos demonstram para a sociedade enquanto vivem anos de tremenda infelicidade e solidão. Os sintomas do amor são comparados aos terríveis sintomas do cólera. A própria paixão de Florentino por Fermina também demonstra ser completamente desnaturada e obsessiva, e incomoda muito.
Na verdade, o autor fez questão de trazer incômodos durante todo o livro. Não só na presença de dores e problemas reais presentes entre relações e na vida, mas também com partes bem desnecessárias, que enojam completamente o leitor. Não gosto nem um pouco da presença da pedofilia e abuso normalizados em certa parte do livro, o que torna a leitura durante essa parte completamente desconfortável, mas penso ser característica da construção de personagem feita pelo autor deixar completamente claro todos os fatores negativos e absurdos ao leitor.
Desde os personagens principais até os que só apareceram em uma página, sinto que todos foram bem desenvolvidos, com sua participação necessária para a trama bem equilibrada. Estando ali para transmitir seja o que for ao leitor, sinto que todos cumprem seu papel, com nada muito excessivo e nada faltando. Em especial achei incrível a construção da velhice dos personagens principais. O envelhecer é tratado nesse livro de uma forma sensacional. As falas dos personagens também são maravilhosas, e possuem aquele tom melancólico, poético e descontraído bem característico.
Em conclusão, eu amei demais esse livro. Achei um livro bem bonito e poético e com certeza me fez pensar e sentir muito. Não é perfeito, tudo tem seus pontos negativos, mas a beleza dele está nisso também. A linguaguem utilizada é um pouco cansativa as vezes, mas nada difícil de se acostumar. A narrativa do Gabo é bem inconsistente e pode confundir um pouco, mas eu pessoalmente amo demais e acho que só me faz entrar mais ainda dentro do universo que o livro me apresenta. Acho que é completamente injusto resumir esta obra como uma história de amor. É muito, muito mais do que isso.