Maikon 16/01/2021minha estanteFera, texto muito bom, embora seja um plágio.
Segue o texto original:
Confesso que só terminei de ler um García Márquez há dois meses. Para não precisar desculpar-me, devo esclarecer a minha crença pessoal e ferrenha de que a arte, por ter uma relação estreitíssima com a subjetividade tanto do artista quanto do ?espectador?, somente consegue firmar a ponte do entendimento no momento certo para que ambos os pólos dessa relação miraculosa possam compreendê-la. Ou, colocando as coisas de outro modo, tudo ? mas principalmente a arte ? tem seu momento certo e preciso para operar magia.
Quando comecei a ler Cem Anos de Solidão pela primeira vez (há mais de dois anos), é claro que reconhecia a boa literatura, mas minha compreensão do texto não passava dessa secura analítica, e por isso resolvi deixá-lo de lado temporariamente e esperar uma oportunidade. Esta surgiu há uns três meses, no meio de um período turbulento em minha vida. E o milagre aconteceu.
Mas não vou falar de Cem Anos de Solidão, claro. O intróito serviu como gancho para explicar por que, antes mesmo de terminá-lo, já tinha comprado O Amor nos Tempos do Cólera. Foi a primeira frase do livro que me fez sua leitura uma obrigação sentimental ? ?Era inevitável: o cheiro das amêndoas amargas lhe lembrava sempre o destino dos amores contrariados?. Foi um baque de olhos arregalados e depois alguns passos resolutos ao caixa da livraria.
O livro é uma longa e intensa poesia em forma (quase não disfarçada) de prosa. Não é simplesmente uma estória de amor mal resolvido, ou de tantas formas de amor quanto possíveis e reconhecíveis. É uma verdadeira epopéia sobre as relações humanas, lindas todas, brutas e delicadas, enaltecedoras e humilhantes. Florentino Ariza, mais que um homem determinado a passar décadas medindo os passos para conquistar Fermina Daza, contra todos os percalços que a vida ou a sua própria amada impunham contra ele, é, no fundo, todos nós.
Quem nunca escreveu cartas de amor que nunca acabaram sendo enviadas? Quem nunca procurou em outras camas o calor que sonhava encontrar na única impossível? Quem nunca sentiu o aperto de ser fria e obstinadamente ignorado justamente pela pessoa por quem vertemos nosso encantamento? Quem nunca chorou de desilusão?
Florentino Ariza se apaixonou por Fermina Daza (a quem nunca havia sequer tocado) ainda na adolescência, e o namorico à distância dos dois, recriminado com pavor pelo pai dela, durou anos de persistentes cartas e mensagens de devoção. Quando Fermina Daza, tempos depois, dá-se conta de que o amor que julgava sentir era inventado, e se alimentava de ilusão imaginada, repele energicamente seu pretendente, que, a partir de então, teve que esperar por exatamente cinqüenta e um anos, nove meses e quatro dias para propô-la em casamento. Na primeira noite após o enterro de seu marido.
Mais que uma dor de cotovelo prolongada, a espera de Florentino Ariza é o fio condutor de sua vida, e a estória é tão poderosa principalmente porque nunca, em todos aqueles anos e ainda depois de outros, ele fraquejou. Acordava e dormia todos os dias com a convicção inabalável de que teria Fermina Daza junto a si. Não, mais do que isso: sua mocidade, vida adulta e boa parte de sua velhice foram somente uma preparação, estóica, comovente e profundamente apaixonada, para o dia em que Fermina finalmente o aceitasse.
É a partir daí que García Márquez, gênio latino-americano da literatura fantástica, desenovela seu texto fluido, carinhoso, e nos confia as amarguras e delícias do amor. Aquele surgido da admiração, da amizade, da necessidade, das dores, da força do sexo, da solidão. O amor que é um convite ao mundo pessoal de cada um de nós. O livro é uma homenagem ao que há de mais humano e nobre, numa narrativa que nunca se permite descambar para a tristeza sentimentalista ou tormentosa; é sempre sensível e tocante, mas sobretudo leve.
Quem nunca se apaixonou, que atire a primeira pedra. O Amor nos Tempos do Cólera é o amor de sonho que parece faltar nos áridos tempos atuais, em que já não se tem mais a certeza de que os olhos falam (e fazem poesia), em que o medo do amor nos condena à solidão e ao esquecimento. Aos apaixonados, aos que querem se apaixonar, ao que não correspondem às paixões que lhes são devotadas: recorram às lições de humanidade do professor García Márquez e procurem reconhecer o Florentino Ariza que habita, calado e esperançoso, dentro de suas almas.
Aline Arroxelas
lido em Jan. de 2004
escrito em 22.01.2004