Candido Neto 29/10/2023Intenso e sútil simultaneamente. (!!!!!!)Dar outra volta no parafuso aumenta a tensão, mas diminui o movimento.
A história contada é cheia de "fatos", sem coisas não ditas onde se pretende revelações de mistério, esse é o primeiro truque de sua escrita.
Há uma aura de fascinação da criada e da tutora por suas crianças, uma vassalagem servil comum à sua época. O autor não a exalta como valor moral, nem a denuncia como exploração de classe. Apenas expõe. Ambiguidade, traço machadiano, autores escrevam assim? Segundo truque.
O terceiro truque se assemelha ao segundo: crianças boníssimas, talentosíssimas e lindas (exaltando seus traços loiros - ! - sabe aquela época?) encantam a protagonista para algumas vezes lhe pegar travessuras assustadoras. Crianças diabólicas de forma não caricatural? Sim queremos.
A protagonista "é seduzida" por seu contratante a quem quer encantar obedecendo a sua única ordem, jamais o incomodar, nunca. E transfere inconsciente e sútil sua devoção ao cavalheiro para o "pequeno cavalheiro", protagonizando diálogos que antecedem uma tensão sexual entre uma jovem impressionável de vinte e um ou dois anos e um garoto de dez. Quem pensou isso? Ela ou ele? O autor de outrora ou seu 'insonhado' leitor de hoje? Truque extraordinário, o quarto, não sei se gosto. Não gosto! (a senhora Grose fala na página 34 sobre o medo da protagonista de ser "contaminada" por Miles, num jogo de palavras que me fez rir).
Onde há fantasmas e também há orações, missas e caminhadas a igreja, duas devotas em nenhum momento procuram ajuda do padre. Não confiam no poder da igreja ou no de Deus? Não sei se isso foi intencional, mas a ironia tão machadiana está lá novamente. Nem é um truque, é a piadinha para presentear a leitura que quer dar outra volta sem estourar o parafuso.
Há, por fim, o truque final. São fantasmas do além túmulo ou de sua própria cabeça? Nem vou falar sobre essa ambiguidade que parece apagar tudo o que os apressados não podem ler pra ver.
Mas nessa ambiguidade recai uma certeza. Uma mulher seria desacreditada fossem os fantasmas imaginários ou não. Se fosse um homem a ver os fantasmas não haveria ambiguidade, era uma história de terror. Isso não era uma possibilidade de visão para esse autor, visto sua época e lugar de classe, de espaço físico e vantagem de gênero dominante. Mas me remeteu aO papel de parede amarelo (excelente novelinha). Silenciamento feminino nunca é com um cala a boca, não dá pra gritar de volta contra o machismo estrutural.
O Douglas, que conta a estória, diz que quando a conheceu houve um interesse romântico frustrado por ela ser dez anos mais velha que ele. (Oi, machismo estrutural, que saudade que não sentimos de você!).
No mais é falar do trabalho gráfico e de edição acima da média, impecável. A tradução me travou em algumas frases, recorri à tradução da Penguin, aí destravou. Pode ser uma escolha por uma tradução que visasse o eruditismo de uma época, então, excelente, mas pra mim, não funcionou.
Para nossa época de dedos rápidos em telas ainda mais rápidas esse livro é chato. Para formas orgânicas de leitura esse livro é muito curto para tanto a ser revelado, bem forjado e com nuances e matizes que não conhecem vulgaridade. Mas o joguinho sexual entre a protagonista e Miles e a tradução lhe dão quatro estrelas.