jota 04/07/2021ÓTIMO: ficção autobiográfica inacabada; infância e puberdade de Albert Camus através de um personagem franco-argelino como eleLido entre 25/06 e 03/07/2021
Albert Camus (1913-1960) morreu num acidente de automóvel aos 47 anos, então não pode terminar O Primeiro Homem. O volume traz vários anexos contendo anotações dispersas que ele iria usar mais tarde na obra, assim como inúmeras notas de rodapé, sugerindo mudanças na redação final. O que demonstra que o livro seria, obviamente, muito mais abrangente em conteúdo do que a presente edição, que praticamente trata apenas da infância do personagem e do início de sua puberdade. A apresentação é feita por Manuel da Costa Pinto, que escreveu diversos ensaios sobre o autor franco-argelino e também prefácios para alguns de seus livros mais conhecidos.
Segundo ele, a narrativa empregada no livro, em terceira pessoa, “relativiza o tom autobiográfico de O Primeiro Homem, transformando-o numa espécie de romance de formação.” Acompanhamos então a história de Jacques Cormery, alter ego de Camus, nascido na Argélia de pai francês e mãe descendente de espanhóis, levando uma vida difícil, cheia de necessidades, sem a presença do pai, morto na Primeira Guerra Mundial. A falta desse pai, que Jacques sequer conheceu, é tamanha que a primeira parte do livro se intitula A Procura do Pai. A segunda parte explica o título do volume: O Filho ou O Primeiro Homem. Na apresentação, Uma Ficção Autobiográfica Sobre a Impossibilidade da Memória, são destacados alguns pontos da obra, o leitor é introduzido no universo de O Primeiro Homem, a impossibilidade do título é traduzida na dificuldade de Jacques reconstituir a história de seu pai: ela residia muito no fato de que a mãe do menino cultivava um esquecimento voluntário, não apreciava falar sobre o passado (nem muito sobre outras coisas, um tanto calada que era, além de meio surda e analfabeta).
Isso é mais bem explicado pelo próprio personagem quando o autor escreve, evocando Proust: “A memória dos pobres já é por natureza menos alimentada que a dos ricos, tem menos pontos de referência no espaço, considerando que eles raramente saem do lugar onde vivem, e tem também menos pontos de referência no tempo de uma vida uniforme e sem cor. [...] Só os ricos podem reencontrar o tempo perdido. Para os pobres, o tempo marca apenas os vagos vestígios do caminho da morte.” A mãe, um irmão mais velho, um tio doente mas amigável, a avó enérgica mas carinhosa: a família de Jacques; a vida difícil que levavam num bairro pobre de Argel, numa casa sem jornais, revistas ou livros (apenas uns poucos, didáticos), tudo é retratado no que seria o capítulo seis do livro, A Família. A escola primária e um professor inesquecível, que Jacques adorava, assim como o conteúdo de suas aulas, também ganham destaque nessa primeira parte. Que prende fortemente a atenção do leitor e ao mesmo tempo, pelas emoções que desperta, pode estabelecer relações literárias mais distantes. Certas passagens de O Primeiro Homem me trouxeram à lembrança o pequeno Aleksiei de Infância, obra-prima de Maksim Gorki: o garotinho russo também era órfão de pai e não teve uma meninice lá muito feliz...
A segunda parte inicia com o primeiro dia de aula de Jacques e do amigo Pierre no ginásio. Ambos, e outros dois colegas do primário, que haviam se destacado como ótimos alunos então, ganharam bolsas de estudo graças aos esforços daquele professor que Jacques jamais esqueceu, monsieur Germain. Agora teriam outras matérias, novos professores, mas nenhum como aquele do primário, confessa um Jacques Cormery adulto, aos quarenta anos, relembrando a infância. Nos intervalos mais longos das aulas Jacques se destacava como jogador de futebol, esporte praticado desde bem cedo. Durante as férias as brincadeiras eram as das crianças pobres, sempre com o amigo Pierre como companheiro, também em caminhadas a esmo pelas ruas, sem destino. Ia muito à biblioteca municipal do bairro, que abria apenas três vezes por semana, onde o amigo também era associado: os livros preferidos eram os de aventura, nenhum grande autor é citado nesse trecho. Jacques lia bastante à luz de lampião, entre uma e outra tarefa doméstica que a avó lhe passava (colocar a mesa do jantar, retirá-la etc.). Seu apreço pelos livros começava pela capa, pelo cheiro das páginas, de cola da encadernação; os alunos destacados ganhavam livros de presente no encerramento do ano letivo, ele ganhou vários todos os anos...
Mesmo ajudando em casa, executando diversas tarefas, a avó achava que aquilo era obrigação de Jacques, não um trabalho de verdade porque não rendia dinheiro algum. Então, durante o ginásio, nas férias de três meses que os alunos tinham, resolveu que ele deveria arranjar um trabalho temporário, o que de fato se deu em duas ocasiões, mas em ambas à custa de pequenas mentiras da avó para os empregadores. Isso deixava o menino envergonhado, embora o motivo para tanto estivesse claro para todos: eles eram muito pobres, precisavam de dinheiro para sobreviver. Também por essa época Jacques começou a pensar no sexo oposto com mais frequência, observar as outras mulheres mais detidamente, bem além da mãe e da avó. As últimas páginas dessa segunda parte trazem diversas reflexões sobre questões desse gênero e outras, que exibem traços do futuro autor de tantos livros relevantes: nelas se pode observar as bases de sua personalidade e de seu pensamento.
Na sequência temos os Anexos, diversos folhetos com anotações de Camus para O Primeiro Homem, já mencionadas, coisas que ele pretendia incluir, rever, alterar, modificar e, por fim, duas cartas. Algum tempo depois de receber o Nobel de Literatura de 1957 Camus escreveu uma breve carta de agradecimento ao professor primário, aquele homem amado, Louis Germain. Agradecia por seus esforços, seu trabalho e o coração generoso que lhe possibilitaram continuar seus estudos. A resposta do professor também é comovente, compreende uma carta mais longa, de quatro páginas, e ao final é quase impossível sair da leitura sem que os olhos estejam marejados...